sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

Moto do presidente tem sido pôr abaixo tudo que o Estado brasileiro erigiu

 Ex-presidentes norte-americanos se vacinarão em público, para atestar a segurança da vacina, e a primeira-ministra Merkel pediu aos alemães que respeitem o distanciamento, sacrificando as festas de fim de ano. Aqui também o presidente opera pelo exemplo: “Eu não vou tomar vacina e ponto final. Se alguém acha que minha vida tá em risco, o problema é meu. E ponto final”.

O presidente é um legítimo liberal em seu apreço à autonomia dos indivíduos como superior ao bem-estar coletivo. Pode-se acusá-lo de muita coisa, nunca de inconsistência. O individualismo egocêntrico, autorreferido, é uma constante em sua vida pública.

É liberal ao estilo hobbesiano, ao imaginar a sociedade como guerra de todos contra todos. Escapa, contudo, da solução de o Leviatã, a criação de um Estado que zele pelos cidadãos. Sua preferência é o permanente estado de natureza, uma guerra ininterrupta. Cada um que cuide de si.

Bolsonaro não é o liberal que constrói instituições, é um liberal da destruição. Seu moto tem sido pôr abaixo tudo o que o Estado brasileiro erigiu desde a redemocratização.

Trata de pôr abaixo a cidadania democrática. Dos direitos humanos, sempre escarneceu, o de minorias, ataca sistematicamente. Vê os direitos sociais como formas de estímulo à vagabundagem. O auxílio emergencial, que lhe insufla a popularidade, é obra do Congresso, sem sua adesão ou a do arquiliberal ministro da Economia.

O presidente é um demolidor de instituições. É certo que teve predecessores nelas próprias, nas políticas como nas jurídicas, que desde 2016, vêm produzindo interpretações tortas e meio envergonhadas das leis. Já o presidente o faz sem pejo. Desafia a Constituição, burla os outros Poderes, o Legislativo, o Supremo, os governadores de estado.

Seu liberalismo é o da ausência de Estado. Vem desmontando burocracias, órgãos, programas construídos e bem-sucedidos em vários governos. Paradigmática foi a longa vacância no ministério da Saúde, como o é a condução da pandemia.

Bolsonaro exclui a solidariedade de sua cesta de valores. Exceção feita à sua própria comunidade: sua família, sua igreja, suas Forças Armadas. Suas, porque não as defende per se, defende a visão que tem delas. Visão pré-moderna, que enaltece os tempos nos quais sangue, fé e armas falavam mais alto que as leis impessoais.

É uma visão reacionária do mundo, mas nem por isso deixa de se conciliar com o liberalismo, na versão lockeana da sagração da propriedade. Liberais norte-americanos e brasileiros a usaram para defender a escravidão, afinal, o escravo era também uma commodity.

O liberalismo bolsonarista combate pela militarização dos cidadãos para que estejam aptos a proteger, com as próprias mãos, suas vidas e propriedades, donde o empenho em remover a taxação das armas.

É liberal também quando diz que cabe à iniciativa privada, não ao Estado, educar a nova geração. Aos pais competiria definir o que aos filhos convém saber ou ignorar, por exemplo, que a Terra é redonda.

Pode-se dizer que Bolsonaro não é liberal quando ataca a ciência, mas rigorosamente, o que defende é o mercado livre de ideias, no qual a opinião de pastor negacionista e cientista consagrado se equivalem. Cada um compre a sua.

É liberal quando transfere a cada indivíduo a decisão de se vacinar: “Devemos respeitar quem não queira tomar”.

Os antivacina contaminarão os que, por doenças ou outras debilidades, estão impossibilitados de se imunizar. O presidente é adepto da seleção natural, deixa perecerem os fracos. Liberal por omissão.


Texto de Angela Alonso, na Folha de São Paulo

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