quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

O estranho hábito de botar palavras na boca de um defunto ainda é recorrente

 “Há décadas em que nada acontece. Há semanas em que décadas acontecem”, teria dito Lênin, a respeito da Revolução Russa. A primeira atribuição da frase a Lênin, no entanto, é de 1991, segundo o site Quote Investigator. Talvez Lênin tenha tido a cortesia de esperar o fim da União Soviética pra versar sobre ela. O mais provável é que o político George Galloway, o primeiro responsável pela confusão, tenha dado a frase de presente ao líder soviético.

Faz sentido. Se o guia de turismo, numa viagem ao Egito, dissesse “do alto dessas pirâmides, 40 séculos os contemplam”, você bocejaria de tédio e talvez escrevesse uma crítica negativa no Trip Advisor. Na boca de Napoleão, exortando uma tropa de soldados a combater uma horda de mercenários, a frase causa arrepios: “Como pôde alguém ser tão poético em cima de um cavalo?”.

No livro “They Never Said It”, Paul F. Boller Jr. faz um compêndio de frases nunca ditas e tenta entender quando foi que a ficção virou fato. Afinal, como diria Lênin, “uma mentira repetida mil vezes se torna verdade” —frase essa que Lênin nunca disse. 

Einstein tampouco disse “sucesso é 1% inspiração e 99% transpiração”, como se fosse um coach motivacional. Tantas frases falsas são atribuídas a ele que chego a me perguntar se alguma vez Einstein disse, de fato, alguma coisa.

Churchill não fica pra trás. “Quem não é liberal aos 15 não tem coração, quem não é conservador aos 35 não tem cérebro”, teria dito Winston. Seu biógrafo Paul Addison garante que a frase é falsa por um motivo simples: Churchill era conservador aos 15 e liberal aos 35.

A frase mais famosa de Maquiavel, “os fins justificam os meios”, nunca foi dita por Maquiavel —assim como a famosa frase de Luís 14, “o Estado sou eu”, só seria atribuída ao rei Sol por Voltaire, um século mais tarde. A história se vingaria de Voltaire, que nunca disse “posso discordar do que você diz, mas defenderei até a morte o seu direito de dizê-lo”. A frase só aparece pela primeira vez em 1906,
por sua biógrafa, que defendeu até a morte o direito do autor de dizer o que nunca disse.

Ao que parece, botar palavras na boca de defunto é um hábito antigo e deve perdurar. Muita coisa há de ser posta na boca dos nossos governantes. Resta saber como é que a ficção irá superar as bostas que o nosso presidente diz. Temo que, no futuro, nosso problema seja o contrário: em vez de gritar, como Paul F. Boller Jr., “ele não disse isso!”, berraremos, desesperados, “eu juro que ele disse isso!". "Eu estava lá.”


Texto de Gregório Duvivier, na Folha de São Paulo

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