sábado, 26 de dezembro de 2020

Moro, voto, cinema: gentes e coisas que acabaram junto com o ano infame

 Odebrecht. A empreiteira campeã em corrupção mudou o nome para Novonor. Alguém imaginaria um nome mais horrível? Ou uma artimanha tão primária para disfarçar a ladroagem da empresa? Emilio e Marcelo Novonor, dois gatunos, continuam tratar os brasileiros como idiotas.

Oposição. Os partidos contra Bolsonaro se uniram para eleger um presidente da Câmara que apoie Bolsonaro incondicionalmente, impedindo a tramitação do seu impeachment. A casta política disputa a tapa com o Planalto e o Supremo a primazia em esculhambar a República.

Alcolumbre. Foi do anonimato ao ridículo num estalar de dedos. Apoiou Bolsonaro para se reeleger presidente do Senado e eleger o irmão prefeito de Macapá —e ambos se estatelaram justamente porque Bolsonaro os apoiou. Como consolo, ganhou o tão cobiçado troféu de paspalho do ano.

Silvio Santos. Completou 90 anos e se consolidou como caricatura do empresariado pátrio. Está grudado no Estado como craca; incensa os governantes irrestritamente; difunde o baixo nível mais abjeto; topa tudo por dinheiro; chegou ao requinte de pôr o genro para endeusar o presidente dia e noite; tem-se em alta conta, é claro: “Dou empregos!”.

Voto. Ao somar as abstenções com nulos e brancos, constata-se que 38% dos aptos a votar não o fizeram nas eleições municipais. É um recorde. Repetiu-se até cansar que os eleitores minguaram devido à peste. É meia verdade: a participação nas eleições vem caindo no Brasil desde 2008.

O fenômeno é mundial. Para que votar, se os partidos traem os eleitores e não resolvem problemas? Mas o número de votantes aumentou em duas eleições recentes, concomitantes do populacho: a chilena, no ápice de meses de agitação pela Constituinte; e a americana, simultânea ao levante contra o racismo, a polícia e Trump.

Doria e Covas. Arrocharam os alquebrados de 60 a 64 anos. Também eles terão que pagar pelo trem, o ônibus e o metrô. Com grande coragem, a dupla tucana deixou passar as eleições e esperou o Natal para apunhalá-los pelas costas. Covas aumentou o próprio salário em 46%. De fato, votar pra quê?

Revolta. Coisa de povos atrasados. Aqui, estamos satisfeitos com nossa ordem desordenada e progresso a passo de cágado: o voto nos basta. Mas como a crise é grave, é preciso, com urgência, não fazer absolutamente nada —a não ser falar, falar sem parar até que as palavras percam todo sentido.

Radicalismo. O presidente do PSOL, Juliano Medeiros, disse que o partido “está ressignificando a radicalidade”. Huummm... Está bem cotado para o prêmio Embuste Vernáculo, concedido por Madame Natasha a iniciantes na arte de aderir.

Sergio Moro. Descolou uma boca numa empresa americana que lhe deposita na conta um salário mensal estimado em R$ 110 mil. A hipocrisia é do jogo; já a insistência em dizer que combate a corrupção é má consciência de quem trabalha pelo dinheiro, mas se acha herói. Vide Millôr: desconfie de quem lucra com seu ideal.

Testes. Os países que melhor protegeram seus povos da peste aplicaram em massa testes para detectar o coronavírus. Não só isso: os contaminados eram isolados e monitorados.

No Brasil, os kits de testes foram comprados, enriqueceram os espertalhões de sempre, são aplicados só a quem paga e apodrecem sem que o povo tenha acesso a eles.

A responsabilidade é do presidente, do capadócio à frente do Ministério da Saúde e dos governadores. Mas ninguém deu um pio contra o descalabro.

Cinema. Sair de casa para ver um filme não tem nada a ver com vê-lo na televisão. Menos pela nitidez das imagens e do som, e mais pelo ritual. Pauline Kael resumiu-o assim: quando as luzes se apagam e todas as nossas esperanças se concentram na tela. No mais das vezes, a esperança se frustra, mas entretê-la é uma liberação. Oxalá se possa um dia ir ao cinema de novo.

Livraria Francesa. Fundada há 73 anos, no começo não destoava do entorno. Mas com o tempo virou um oásis no centro de uma São Paulo miserável, de crueldade e feiura estridentes. Com suas luzes de neon, era clara e ordenada: aqui os livros da Pléiade, ali os de bolso, lá os lançamentos.

A livraria da rua Barão de Itapetininga foi fechada pela indigência paulista e pela perda de prestígio da cultura francesa para a várzea globalizada. Urbana e histórica, a perda também é pessoal porque, como diz Proust, a recordação de certa imagem é a saudade de certo instante, e as casas, as ruas, as livrarias, são fugidias, hélas, como os anos.


Texto de Mario Sergio Conti, na Folha de São Paulo

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