segunda-feira, 6 de agosto de 2018

Poeta da praia

Todo dia escrevia um novo poema na areia da praia. Usava letras grandes e bem desenhadas. Gastava certamente uma boa hora para imprimir todos os seus versos junto ao mar. Gostava de um tom melancólico. Será que escrevia antes de sair de casa? À mão? Numa velha máquina de datilografar? Num moderno computador? Reuniria os melhores poemas numa antologia a ser publicada uma vez por ano, uma vez na vida ou depois da sua morte? Concebia a sua arte enquanto a rabiscava no chão sob o sol ardente? Neste caso, anotava o resultado numa caderneta antes de ir embora? Fotograva o poema com um celular antes de deixá-lo à mercê da língua salgada e inevitável do oceano?
Controlava as marés para não perder a viagem de casa até a praia? Sentava-se à sombra de um coqueiro para ver o mar devorar a sua obra com duas ou três lambidas? Fingia passear só para acompanhar a leitura de alguma pessoa? Escrevia na areia por saber que toda glória é vã ou para sentir-se poeta ainda que por algumas horas? A sua melhor metáfora seria justamente o poema na areia, fugaz, anônimo, passageiro, indefeso diante da violência da água? Escrever na areia era uma forma, ao mesmo tempo, de existir e de assumir a sua inexistência? Ser tudo e nada num mesmo movimento? Fazia isso por sentir-se fracassado ou para realçar a morte da poesia num mundo de nômades do turismo cada vez mais apressados e materialistas? Aproveitava alguma hora deserta para escrever sem ser visto e permanecer anônimo? Preparava as suas varas de escrita como quem aponta um lápis? Terá puxado conversa com um leitor eventual?
Seria um homem ou uma mulher? Um ancião ou uma pessoa de meia idade? Um desiludido com a falta de editoras para poesia? Um louco? Um cínico? Um cético? Um anarquista? Numeraria os seus poemas? Em qual estaria? 3.652? 4.327? Teria uma pasta abarrotada desses poemas “marítimos”? Escrevia em dias ensolarados e sombrios com a mesma inspiração? O que fazia nos dias de chuva? Os moradores do lugarejo certamente o conheciam. O que pensariam dele? Viam-no como um sábio ou um personagem esquisito? Pescava antes ou depois de escrever seu poema? Brincava com os visitantes deixando suas pegadas na areia na esperança de vê-las fotografadas, lidas, comentadas, aplaudidas?
Observava os leitores para ver se chegariam ao fim de cada poema? Zelava para que não pisassem em cima das suas obras nem as apagassem por maldade? Raramente passa um dia em que eu não pense no poeta da praia. Vi nos versos dele as palavras amor, morte, solidão, mar e chuva. Pensei em ficar de campana para flagrá-lo escrevendo. Para que serviria isso? Eu sabia de outro poeta assim, o poeta de São Miguel dos Milagres, que atraía a minha atenção nas férias. Saberia um da existência do outro? Existirão muitos assim pelo mundo? Sempre que penso nele me vem à mente um dos seus poemas: “Há uma gota de sal em cada poema/Um grão de areia em cada fonema/Tudo se esvai com a chuva e com o vento/Só ficam a morte, a solidão, o amor e o ensimesmamento”.

Crônica de Juremir Machado da Silva, em seu blogue no Correio do Povo

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