quarta-feira, 8 de agosto de 2018

Como nasce a escola dos sabichões

É possível que, com Ciro Gomes e Jair Bolsonaro, os debates entre candidatos à Presidência voltem a ser mais emocionantes. Das últimas vezes, mal consegui prestar atenção.
Os nostálgicos podem conferir alguns momentos bizarros de políticos antigos no YouTube. Faz sucesso entre os mais jovens, pelo que sei, a figura do famoso Enéas, do Prona.
Um episódio dele, num debate pela Prefeitura de São Paulo, merece ser lembrado.
Com seus óculos enormes, careca alongada e diploma de médico, Enéas tentava mostrar-se mais inteligente e culto do que os rivais. O palavrório, alimentado de arrogância nanica, contribuía para a inesquecível esquisitice do conjunto.
É assim que Enéas foi sorteado, num debate, para fazer perguntas a Marta Suplicy, então candidata do PT à prefeitura. No YouTube, a cena é apresentada como um "show" de Enéas, em que ele "detona" a petista.
Não era nada disso. Com a magnanimidade dos autoiludidos, Enéas concedeu a Marta o direito de escolher uma só questão das três que iria apresentar.
Rapidamente, enuncia as "bombas" que, na sua opinião, mostrariam plenamente a incompetência da petista para administrar São Paulo.
"Sobre a potamografia de São Paulo, e os problemas dela decorrentes para o município, qual a sua solução?" "Qual a composição do ar que se respira aqui em São Paulo?" E "sobre o distrito de Marsilac, qual seu maior problema de índice de bem-estar social, e como resolvê-lo?"
Com certa ingenuidade irritante, Enéas esperava impressionar a plateia, e deixar Marta sem resposta, na expectativa de que ninguém soubesse o significado da palavra potamografia (diz respeito ao traçado dos rios da cidade).
Confiava também embatucar a candidata no tema da poluição atmosférica —como se um prefeito devesse conhecer de cor as porcentagens de fuligem e monóxido de carbono.
Lembro desse tipo de perguntas "eruditas", no estilo de Enéas, quando vejo alguns grupos e lideranças de extrema direita aumentando sua presença no debate público.
Na audiência sobre o aborto, promovida há alguns dias no Supremo Tribunal Federal, alguém veio com pergunta parecida. Tentava-se embaraçar a representante da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência), que tinha opinião favorável à descriminalização do aborto.
Vinha a suposta "bomba". "Qual sua opinião sobre a obra de Karl Ernst von Baer, publicada em 1826, e que evidencia o início da vida na fecundação?"
Caso a professora vacilasse, pronto! Estaria "provado" que ela não entende nada do assunto, e que em vez de cientista era apenas uma defensora da "ideologia de gênero"...
Ela não se abalou, até porque esse Von Baer do século 19 foi o fundador da embriologia. Mas seria necessário ler seu livro, 160 anos depois, para ter opinião sobre o aborto?
O truque, na verdade, tem versões mais grosseiras, e é recorrente.
Seguindo o bom senso, que acompanha por sua vez opiniões cristalizadas na comunidade científica, você diz, por exemplo, que o criacionismo está errado, ou que a Terra gira em torno do Sol, ou que Marx tem tal e tal visão sobre o capitalismo.
Surge então o maluquete de direita, e com um ar superior pergunta se você leu de fato toda a obra de Darwin, se já estudou os textos de Copérnico e Galileu, e quantas páginas você abriu de "O Capital".
Poderá perguntar, em seguida, se você conhece a obra de algum obscuríssimo teórico criacionista do Alabama ou de um economista desconhecido da Universidade de Navarra.
Você dirá que não, obviamente, e seu adversário sairá satisfeito. Considera-se vitorioso, porque provou que você é um ignorante, manipulado pela mídia de esquerda; esta esconde os "verdadeiros" livros...
O fato de ele pertencer a uma franja delirante, dotada de referências bibliográficas próprias, não o incomoda. Como ele tem uma teoria conspiratória da realidade, quanto mais minoritário ele for, mais cheio de razão ele irá se sentir.
Com a voga do "politicamente correto", esse tipo de doido termina se beneficiando de algum respeito geral, a que se soma a velha preguiça da esquerda, a qual nunca se preocupou em debater com extremistas que ninguém levava a sério.
E assim vão, de vento em popa, os patetas da "potamografia", do "eu li Darwin e você não", do "você não pode falar mal dos conservadores se não conhece a obra de John Calhoun", e do "está provado que Hitler era de esquerda". É a escola dos sabichões. Os netos de Enéas fazem a festa.

Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo

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