quarta-feira, 29 de agosto de 2018

Mãe trans é impedida de registrar filho biológico em cartório no RS

No dia 3 de agosto, quando a professora Ágata Vieira Mostardeiro, 25, pegou o filho Bento no colo, pela primeira vez, ela enfrentou a tremedeira nos braços pelo medo de deixá-lo cair, e o segurou forte. “Não queria mais largar. Tão pequeno e tão lindo. Fiquei boba, sabe?”. 

Ter um filho com a designer de moda, Chaiane Cunha, 26, que tivesse o DNA das duas, era um sonho. Ágata, que se identifica como mulher trans há um ano e um mês, esperou a gravidez da namorada ser confirmada para começar o tratamento hormonal de transição de gênero.

Assim que viu o resultado positivo, correu para retificar seus documentos a tempo de ter seu nome na certidão do filho. No dia seguinte ao nascimento, ela seguiu para fazer o registro de Bento.

 A animação com o que era para ser um dos momentos mais felizes da vida, porém, murchou na mesa da atendente. O cartório não aceitou seu nome como genitora biológica da criança. 

“Me orientaram fazer a certidão só em nome da outra mãe e eu ser registrada como mãe socioafetiva. É o que costumam fazer. Mas, eu sou mãe biológica. Bento é meu único filho e acho que será o único filho biológico possível de nós duas”, afirma.

“É angustiante, estar num momento feliz e não poder registrá-lo, além de me mencionarem como pai, volta e meia, de uma forma não legítima”.

O parto, realizado em Canoas, região metropolitana de Porto Alegre (RS), não foi fácil. Primeiro, o bebê teve de enfrentar cinco dias de UTI para regular a glicose, um reflexo do diabetes gestacional da mãe, que não foi diagnosticado no pré-natal. 

Poucos dias depois de ter alta, o bebê voltou a ser internado no hospital para tratar uma infecção urinária. Diagnosticado com infecção sanguínea, ele segue em tratamento médico.  

Na terça-feira (21), após semanas à espera de uma resposta da Justiça, Ágata cedeu. Na Declaração de Nascido Vivo, assinada pelo médico que fez o parto, seu nome estava como “companheira” da mãe da criança. Ela aceitou registrar o filho como mãe socioafetiva, para conseguir incluí-lo em seu plano de saúde e trocar de hospital, enquanto Chaiane assinou um documento dizendo que desistia de procurar “pelo pai biológico” da criança.

Um dia antes, respondendo ao parecer do Ministério Público sobre o caso, o Fórum de Canoas condicionou o registro da criança à apresentação de atestado médico afirmando que Ágata não havia alterado seu sexo biológico na época da concepção  —ou seja, que teria condições físicas de ser “pai”— e à uma declaração de Chaiane certificando o vínculo biológico do filho com a namorada. 

“Vendo do ponto de vista de filha sem o nome do pai no registro, sabendo que essa é uma realidade recorrente, fico indignada. O Bento é de nós duas, é geneticamente das duas. Não faz sentido que só o meu nome conste”, diz Chaiane. 

No final de junho, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicou a regulamentação para retificações de nome e sexo em cartórios de todo o país. Sobre filhos, o documento se refere apenas à mudança de documentos já existentes: em caso de retificação do nome de um dos pais, a alteração deve ter concordância do próprio filho e de outro pai. O caso de Ágata é diferente.

“Se o nome já está retificado, a partir do momento da retificação, todos os atos jurídicos que essa pessoa praticar ela vai praticar com esse [novo] nome. Inclusive, o ato de registrar o filho”, explica o defensor público Mário Rheingantz.

Em nota, a Associação dos Notários e Registradores do Brasil (Anoreg) alega que o cartório “não se recusou a realizar o registro de nascimento”. A entidade diz que o cartório questionou a Justiça sobre qual o procedimento adequado no caso e que no dia 20 afirmou à família que o registro poderia ser feito caso se comprovasse vínculo biológico do pai com a criança e a mãe comparecesse no local. “A precaução do cartório foi no intuito de evitar prejuízos à família em razão de eventual procedimento incorreto”, diz o texto.

Para a advogada Gabriela Souza, que representa Ágata, o caso mostra o despreparo do Judiciário para lidar com novas famílias e o preconceito da sociedade contra pessoas trans. 

“O ato de registro civil é um ato unilateral. Se vai um homem cisgênero [que se identifica com o sexo biológico] e hétero registrar a criança, ninguém pede DNA, ninguém pede que a mãe que está no hospital mande declaração por escrito dizendo que transou com esse homem. Acredito que esse caso seja o primeiro do Brasil”, afirma. 

O próximo passo, diz ela, é entrar com uma ação para constar na certidão de Bento que ele tem duas mães biológicas e reconhecer Ágata como tal. A advogada também planeja entrar com uma representação na OAB, por quebra de direitos, e outra contra o próprio Judiciário.


Reprodução de reportagem de Fernanda Canofre, para a Folha de São Paulo

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