sexta-feira, 17 de agosto de 2018

Me deixem ser mulher



Você escreve como uma mulher? Essa é a pergunta da moda. Respondo sempre que sim, escrevo como uma mulher porque, ora pois, sou uma. Para mim é simples assim. Insistem: então você é uma mulher escrevendo? Olha, sou, viu? Sento aqui na minha cadeira, amassando minha vagina com calças que depois da gravidez ficaram apertadas, e escrevo.

Às vezes, com minha voz de mulher, peço ao meu marido que me traga uma água da cozinha. Ele não gosta muito porque homem não gosta de ficar fazendo coisas desse tipo para mulheres. Daí eu faço uma cara que, pude agora verificar no espelho, é de mulher, e digo "por favor, vai", e ele acaba trazendo.
As mãos que digitam, estou confirmando isso neste exato momento, não se parecem com a de um rapaz. Se forço a cervical um pouco mais para baixo (e isso costuma me dar enxaqueca depois) vejo seios. Se eu enfiar agora a mão dentro da calcinha, meus dedos ficarão sujos de sangue. 
Quando nasci, no Hospital Matarazzo, falaram pra minha mãe "é menina". Minha mãe falou pra minha avó "uma menininha" e minha avó falou pro meu pai "você é meio lerdo, vai logo no cartório antes que feche... ah, sim é mulher". Meu pai então foi ao cartório e me registrou como tal. Nunca os chamaram de loucos.
Aos 19 anos eu ficava um pouco entumecida com uma amiga da faculdade que tinha mania de desembaraçar meus cabelos. Aos 30, na festa que ficou mundialmente conhecida em Pinheiros como "open house do ofurô", apalpei peitinhos de amigas e beijei de língua uma gringa. Nunca quis ter pinto, a não ser para pô-lo na mesa quando produtor rico vem com papo de "faz de graça pelo amor à arte". Todo meu respeito a quem tem outras histórias relacionadas a gênero, sexo e amor a arte, mas a minha é essa.
E se meu narrador for masculino? E se meu personagem principal for masculino? E se o narrador-personagem for uma mulher que se identifica com o gênero masculino? E se o narrador onisciente for um homem que, ao longo do tempo que eu demoro pra escrever um livro, se descobrir mulher, mas uma mulher lésbica que, ao longo do tempo que demoro pra editar um livro, mantém o nome de origem para uso exclusivo do Tinder? E se a escritora se sentir mais fálica do que fada? E se Elena Ferrante for um macho branco opressor? E se Philip Roth não tivesse escrito "O Complexo de Portnoy"?
Eu não faço a menor ideia, eu nem entendi nada do que eu acabei de escrever. Em nome de Deus me deixem apenas ser mulher. Durante um dia, enquanto sento aqui nessa cadeira, sou velha, criança, machona, rinoceronte, um poodle deprimido, um assassino, mas, comandando o circo, sou mulher. 
"Sou, sobretudo, uma pessoa". Se você concluir isso, em qualquer mesa, em qualquer debate, em qualquer feira literária, em qualquer lugar com jovens, feministas, jornalistas e pessoas que gostam de livros, você será aplaudida. "Sou, sobretudo, eu mesma, um ser humano". Aplausos! Mas a verdade é que, tirando os "lugares-comuns da Vila Madalena", que falo para não ser apedrejada, eu sou mulher. Desculpa desagradá-los, sei que neste 2018 se espera mais de uma mulher, mas é o que tem pra hoje.
Quem se ofende está entendendo que, implícita na pergunta, pode ter a frase "não tão incrível quanto um homem" ou que ser algo limita o poder da criatividade. O que eu falo tem tantas idades e gêneros e maldades quanto eu quiser inventar, mas, apesar disso e também por isso, sou mulher. E quem me encher o saco, que pegue no meu pau.

Tati Bernardi, na Folha de São Paulo

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