quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

Sem saber que estão mortos, lutam sem parar, pela eternidade

Meus amigos, quando penso nas tantas coisas que ouvi atrás daquele balcão riscado de faca da minha velha Vila Rica, até me arrepio.  Não, não é medo, é saudade mesmo.  É que, confesso, me dói saber que aquelas noites de causos e luar, de imaginação e muitas risadas, nunca, nunca mais voltarão. É lamentar que todos os contadores de causos daquele tempo se foram, partiram, me deixaram para sempre. Foram contar histórias noutras dimensões. Naquela época eu era tão pequeno, tão guri, e nutria uma vontade atávica de escutar tudo o que aqueles homens simples expressavam. Dores, mágoas e alegrias. Tínhamos tão pouca coisa, eu e eles. Umas milongas no rádio, umas carreiras no domingo, umas changas e uns poucos trocados no bolso das bombachas.
Minto. Na verdade tínhamos muita coisa. As amizades sinceras, o companheirismo e a solidariedade campeira em tudo. Nos ajudávamos nas matanças de porco, na abertura dos roçados, no plantio de mandioca e milho e na cura de reses. Era um prender o grito e lá o povo se reunia ao redor. Era assim, naquele tempo. Por isso, minha gente, eu acredito em tudo o que ouvi lá, ninguém mentia. Aumentavam um pouco, é verdade, depois de uns goles de canha, mas isso o senhor e a senhora hão de convir, todos fazem. Os jornais hoje estão lotados desses exageros, ou não? E a televisão, então, vive disso, de criatividade, de tantas coisas maquiadas e todos perdoam. Então, se nos dias de hoje tudo é perdoado, porque não perdoaríamos algumas pequenas invenções daquele povo tão sofrido?
Lembro de uma dessas noites que não dormi de tão apavorado que  fiquei com um causo contado pelo tropeiro Alípio. Era uma sexta-feira, parece que foi ontem. Segundo o relato, lá pros lados do Ibicuí, buscando um gado para o finado Salustiano,  ele e os parceiros tiveram que acampar numa antiga fazenda perto do Passo do Jacaquá. Não dormiram. De madrugada, começaram os gemidos, os gritos, os estampidos e o barulho metálico de ferro contra ferro, até faíscas saiam das espadas. Disse o Alípio, que um dos tropeiros, um tal de Zorrilho, que fazia a ronda, viu um grupo de “combatentes”, peleando de arma branca, aos gritos. Porém, eram vultos, esqueletos, de gente mesmo, nada. “Fomos lá ver mas só o Zorilho via, nós não. Mas ouvimos uns lamentos, essas coisas apenas alguns enxergam”, disse o Alípio. “Seu Neto, o capataz, que carregava a  imagem da Virgem nos arreios, fez uma oração e a função parou por completo.”
Meu tio Carrapicho confirmou que pros lados do Ibicuí tinham ocorrido vários combates durante a Revolução Federalista de 1893, famosa pelas degolas. “Dizem que neste lugar ocorreu um confronto onde todos morreram, forças castilhistas e do Gumercindo, mas os combatentes não se deram conta. Por isso lutam sempre, sem parar, pela eternidade”.
Até hoje penso nessas coisas que se perpetuam, nunca terminam.

Texto de Paulo Mendes, no Blog Campereadas, no Correio do Povo

Nenhum comentário:

Postar um comentário