Cresce, diz a "Ilustrada", o fenômeno da solidão nos países desenvolvidos. Segundo reportagem publicada neste sábado (30/1), "mais da metade da ilha de Manhattan tem moradias com apenas um habitante".
A estatística não quer dizer que as pessoas prefiram o isolamento total. Viver sem companhia pode refletir apenas uma rejeição ao casamento monogâmico e aos inconvenientes da vida familiar.
Faço um raciocínio econômico. Sempre foi mais vantajoso dividir despesas fixas de moradia, como contas de luz, condomínio e aluguel. Ainda mais, imagino, em Nova York.
Talvez esteja sobrando dinheiro nas grandes cidades desenvolvidas –o que não é de estranhar. O custo de vida nesses lugares já deve selecionar um bocado o tipo dos habitantes.
Acrescento um ou dois palpites mais sociológicos. Uma aceitação quase geral da homossexualidade certamente diminui o número das residências familiares. Mas pode ser que, com a febre do casamento gay, o hábito de viver junto esteja, ao contrário, crescendo nessa parcela da população.
O filósofo prussiano Immanuel Kant (1724-1804) deu uma definição célebre do casamento. Seria um contrato destinado a assegurar a quem o assina a posse, por toda a vida, dos atributos sexuais do parceiro.
Houve quem denunciasse o "cinismo" dessa concepção. Na verdade, Kant queria dar uma dimensão ética à sexualidade.
Do sequestro sexual à compra de esposas, a "coisificação" seria a regra do desejo físico –ao passo que, num contrato, a liberdade de cada um está sendo levada em conta.
Liberdade por liberdade, não demoraria muito para que fossem revistos do contrato os parágrafos relativos à duração e ao exclusivismo da posse.
Quando aumenta a proporção de mulheres no mercado de trabalho, desaparece a dependência econômica que fez muitas delas aguentarem os maridos.
Isso acontece faz tempo, é claro. Mais recente é o fato de que, com a repartição das tarefas domésticas, além das inúmeras facilidades que surgiram na limpeza, na cozinha e até na criação dos filhos, também os maridos deixaram de depender dos serviços da mulher.
Morar sozinho acaba sendo menos uma "decisão" do que uma consequência natural das coisas –tão comum quanto foi, por séculos, a longevidade dos casamentos sem amor.
Mais interessante, acho, é a escolha pela solidão absoluta. Não a comodidade oferecida pelo fim do casamento, mas o desejo de se afastar completamente de qualquer contato social.
Nesse caso, vale a pena conhecer a cápsula criada pela firma Nice Architects, da Eslováquia. Toda prateada e curvilínea, como o bico de um avião, a unidade habitacional dispõe de uma helicezinha própria para captação de energia eólica.
Fica postada numa ponta desse óvulo, como se quisesse lembrar as chaminés dos velhos desenhos de infância. Há também placas de energia solar, garantindo estadias prolongadas sem problema.
Dentro, tudo é previsivelmente branco. As janelas, suponho que herméticas ao extremo, têm para-brisa. A ideia corresponde a uma miniestação polar, e as fotos do site (nicearchitects.sk/en/ecocapsule) sugerem de fato meses de solidão numa paisagem de inverno.
Ou, então, nas altitudes de um teto de edifício em Nova York. A possibilidade de se levar o casulo até a praia também se contempla –mas teria de ser, imagino, nos litorais do Báltico ou entre os pedregulhos da Escócia.
A pergunta fica no ar: tudo ótimo, mas será que tem acesso à internet?
Ah, você já quer roubar no jogo... A solidão será de mentirinha, claro, se o contato na web estiver permitido.
Alguns spas e hotéis, por sinal, oferecem serviços de "desintoxicação eletrônica" –uma espécie de apagão a preços altos. Nada a ver, portanto, com o simples esporte de "morar sozinho". Aposta-se numa solidão de outro tipo.
Há solidão na internet, não nego. Você continua sozinho trocando mensagens com outras pessoas. Só que essa autonomia, essa independência frente à presença física dos outros, tem seu outro lado.
Nós mesmos nos tornamos transparentes, porosos, permeáveis. O fluxo de imagens e comunicados nos dissolve. A solidão é uma espessura, feita do piche, da gosma, da goma escura de nós mesmos. É preciso encapsulá-la, concentrá-la, endurecê-la –daí os pequenos espaços, feitos de alumínio e prata, de tijolo e aço, que inventaram para nos esconder.
Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo.
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