domingo, 21 de fevereiro de 2016

Ironia marcou a trajetória singular do italiano Umberto Eco

A trajetória de Umberto Eco é uma das mais singulares da cena intelectual. Em alguma medida, seu percurso biográfico colocou em cena o hiato, para muitos um abismo, entre o universo acadêmico e o mundo do entretenimento da indústria cultural, que se tornou onipresente após a Segunda Guerra e que hoje assume dimensão planetária.
Aliás, em meados do ano passado, uma declaração de Eco teve grande repercussão, pois ele considerava que as redes sociais haviam criado um tipo nefasto, embora caricato: o "idiota de aldeia" convertido em "portador da verdade". A intolerância e a agressividade, característica do "ethos" predominante na internet, teriam como base essa alquimia desorientada, o milagre da multiplicação dos pequenos profetas de plantão.
Formado em filosofia em 1954, a carreira acadêmica de Umberto Eco é das mais ricas e fecundas do século 20. Professor catedrática de semiótica na Universidade de Bolonha, escreveu alguns dos livros mais influentes na sua área de estudos, produzindo com vigor e celeridade pouco comuns.
Em 1962, lançou "Obra Aberta", ensaio no qual chamava a atenção para o dispositivo formal da obra de arte, que, partindo de um campo já conhecido, tende a ampliar suas possibilidades. Para tanto, o concurso do receptor é fundamental, pois cabe a ele atualizar o potencial de uma obra. Por isso mesmo, aberta. Abertura estrutural, deve-se acrescentar. Ao travar conhecimento com a poesia concreta e, especialmente, com a ensaística de Haroldo de Campos, com grande correção e generosidade, Eco reconheceu que o brasileiro já havia empregado a expressão "obra aberta" com a mesma intuição.
Intuição aprofundada em livros seminais, "Lector in Fabula" (1979) e "Os Limites da Interpretação" (1990). Neles, a noção-chave sugere que todo texto é, por assim dizer, uma partitura à espera de seu intérprete: o leitor. Todo ato de leitura supõe a criação de verdadeiras comunidades virtuais de produção e transmissão de sentido. No limite, a interpretação "individual" de uma obra determinada também é o resultado de camadas e camadas de leituras prévias.
Um exemplo basta para mostrar a fecundidade da ideia: depois da invenção goetheana de Hamlet como alguém incapaz de tomar uma decisão, como recordar que o "jovem" Hamlet tem exatos 30 anos, como se diz com todas as letras na famosa cena com o coveiro Yorick. A obra de Eco esclarece o que está em jogo nessa "superinterpretação", tema tratado em livro de 1992.
Em 1964, Eco publicou "Apocalípticos e Integrados", refletindo acerca de qual atitude tomar numa sociedade que se via literalmente invadida pela cultura de massa. Não se tratava de recusar esse bravo mundo novo, tampouco de se entregar sem reservas. O desafio centrava-se em encontrar uma linha tênue entre os furiosos apocalípticos e os velozes integrados.
Em 1980, com "O Nome da Rosa", Eco fez o improvável, reunindo trama policial, filosofia e teologia medievais, teoria semiótica, e uma miríade de alusões literárias, compondo um arco onívoro, que se estende de Aristóteles a Jorge Luis Borges e James Joyce. Esse complexo romance tornou-se um grande êxito internacional, chegando às telas do cinema com Sean Connery.
Uma saborosa ironia que o autor de "O Super-Homem de Massas" (1978) certamente soube apreciar.


Texto de João Cezar de Castro Rocha, professor de literatura comparada na UERJ, publicado na Folha de São Paulo

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