sábado, 25 de setembro de 2021

Só os filósofos de língua portuguesa podem pensar em coisíssima nenhuma


Dizem que Tales de Mileto estava um dia tão embrenhado a olhar para o céu, observando as estrelas, que acabou por cair num poço. Platão acrescenta que uma bela e espirituosa criada da Trácia riu dele e o fez notar que a sua ambição de conhecer as coisas do céu o impediu de ver as coisas que tinha mesmo debaixo do nariz.

Não sei em que medida é que o fato de a moça ser bela, espirituosa e criada oriunda da Trácia acrescenta peso à humilhação de Tales, mas Platão achou importante que tivéssemos essas informações. Talvez seja mais humilhante fazer figura de bobo à frente de pessoas belas. Pode ser isso.

Costuma dizer-se que, quando o sábio aponta para a Lua, o louco olha para o dedo. O que me interessa é que o autor dessa observação olhou para todo o lado: para o sábio, para a Lua, para o louco e para o dedo. O que quer dizer que olhou através dos seus olhos (porque viu o sábio e o louco), e olhou através dos olhos do sábio e através dos olhos do louco (porque também viu a Lua, como o primeiro, e também viu o dedo, como o segundo). Na história de Platão, Tales só viu as estrelas. A criada viu Tales, as estrelas e o poço. Ela era uma filósofa melhor.

Heidegger recupera essa história no seu livro "O que É Uma Coisa?", cujo título dá vontade de rir, pelo menos até a gente começar a ler, altura em que toda a alegria nos abandona.

O livro é uma investigação sobre a substância das coisas, a nossa relação com elas, e o modo como a nossa relação com elas pode influenciar a sua substância. Ou seja, é chato (eu sou um leitor de filosofia muito sofisticado).

Mas todas aquelas reflexões sobre as coisas fizeram-me lembrar aquela expressão que os falantes de português usam: coisíssima nenhuma. E afastei-me um pouco do pensamento de Heidegger para me maravilhar com a improbabilidade dessa expressão.

Como assim, coisíssima? Coisa é um substantivo. Quem teve a ideia de o superlativar? E então concluí que qualquer filósofo pode dedicar-se a pensar as coisas. Mas só os filósofos de língua portuguesa podem ser bem-sucedidos na difícil, quase impossível tarefa de pensar em coisíssima nenhuma.


Texto de Ricardo Araújo Pereira, na Folha de São Paulo

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