sábado, 18 de setembro de 2021

Nunca confie em bebês, eles dominam todas as técnicas dos piores vigaristas


A minha filha mais velha fez 18 anos. Não esperava este desaforo dela. Mesmo quando, no ano passado, fez 17, não imaginei que este ano fosse fazer 18. Fui apanhado de surpresa.

E agora ela foi para a universidade, na Inglaterra. Eu fiquei em casa, a 1.408 quilômetros de distância dela, segundo o iPhone, e descobri que aquela sensação passageira de susto que a gente sente na barriga quando se aproxima de um abismo pode tornar-se permanente.

Passo à porta do seu quarto vazio: abismo. Tropeço num objeto que lhe pertence: abismo. Vejo o seu rosto numa fotografia: abismo. Racionalmente, eu sei que ela não foi para a Guerra do Vietnã, e que posso vê-la todos os dias por videochamada, mas o abismo não me deixa concentrar na razão.

Isso começou quando ela nasceu. Não se pode confiar em bebês, a verdade é essa. Não é por acaso que nunca ninguém comprou um carro usado de um bebê. Eles dominam todas as técnicas dos mais safados vigaristas.

Imaginemos que um dos nossos amigos conhece uma pessoa e, no preciso segundo em que a conhece, declara ter se apaixonado perdidamente para sempre. Todos nós diríamos ao nosso amigo que estava a ser insensato, que não conhecia a pessoa, que é impossível amar incondicionalmente uma pessoa que acabamos de conhecer.

Exceto se essa pessoa for um bebê. Nesse caso, felicitamos o amigo. Claro que sim. Claro que ele já ama uma pessoa que acaba de conhecer. Note-se que estamos a falar de uma pessoa da qual o nosso amigo nada sabe, até porque ela não apresenta quaisquer referências e —o que é bastante suspeito— não é possível encontrar qualquer vestígio seu nas redes sociais.

É óbvio que aquele bebê vai fazer nosso amigo sofrer. Mais cedo ou mais tarde, aquele bebê vai inscrever-se em literatura inglesa e estudos clássicos numa universidade estrangeira. E nosso amigo vai ficar desolado. Sabem quando, no filme "Um Sonho de Liberdade", o diretor da prisão descobre que Andy Dufresne escavou um túnel na sua cela e o escondeu atrás de um retrato de Rita Hayworth?

Percebi que a minha filha passou 18 anos a fazer o mesmo. Distraiu-me com o rosto de bebê. E por trás escavou o abismo.


Texto de Ricardo Araújo Pereira, na Folha de São Paulo

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