domingo, 5 de setembro de 2021

Clássico conservador mostra que Bolsonaro é a carcaça do conservadorismo


Este texto só tem uma pergunta a responder: ainda é válido discutir o conservadorismo em um país em que o patriarca maior, o presidente da República, se orgulha de se afirmar um seguidor desse tipo de pensamento, enquanto também é responsável, direta e indiretamente, pela morte de quase 600 mil pessoas?

Para isso, precisamos analisar o livro tido como Bíblia para os integrantes desse movimento, lançado recentemente no Brasil, em meio à pandemia do coronavírus. Trata-se de “A Mentalidade Conservadora” (1953), do norte-americano Russell Kirk, publicado pela É Realizações em uma luxuosa edição, com tradução de Márcia Xavier de Brito que captura com precisão o elaborado estilo do autor.

A história dessa obra, cujo título original era “A Diáspora do Conservadorismo”, é curiosa. O livro é resultado de uma tese acadêmica de dois volumes feita por Kirk quando ele estudava para um doutorado na Universidade de St. Andrews, no condado de Fife, na Escócia.

O então jovem pesquisador (1918-1994) vinha do estado do Michigan e nunca se sentiu à vontade diante das instituições de ensino do seu país. Por causa da Segunda Guerra Mundial, na qual serviu no Exército como um soldado administrativo, foi obrigado a terminar os estudos na Europa.

O ambiente europeu o marcou para sempre (até influenciou o cenário de seu romance, “Old House of Fear”, de 1962). Ali, ele começou a analisar em detalhes os escritos de Edmund Burke (1729-1797), um estadista irlandês, mas atuante no Parlamento do Império Britânico, que criou polêmica entre seus pares ao atacar diretamente o grande evento histórico a seduzir todos os políticos da época: a Revolução Francesa.

Kirk viu em Burke uma espécie de “alma gêmea”, um espelho das suas inquietações políticas e existenciais. Ambos olhavam o mundo onde viviam imerso na decadência religiosa, no desprezo pela comunidade, atacado de todos os lados pelo crescimento do Estado moderno —o qual, combinado com a paixão pelo progresso da técnica, dava proeminência aos intelectuais que defendiam acima de tudo a abstração filosófica. Com isso, esses intelectuais se esqueciam de um componente muito importante da natureza humana: a imaginação.

Para Burke, o fato que detonou todo esse processo histórico inevitável foi a Queda da Bastilha (1789); para Kirk, a sua própria época era filhote desse desastre —e cabia a ele impedir que a degeneração vista por seus olhos invadisse os seus semelhantes.

Portanto, a redação da tese “A Diáspora do Conservadorismo” não era somente um belo estudo de erudição (o que, de fato, sempre foi); era também um manifesto de defesa daquilo que chamava de “as coisas permanentes”.

“A Diáspora do Conservadorismo” se transformou em “A Mentalidade Conservadora” quando o editor Henry Regnery decidiu publicá-la, desde que Kirk cortasse o manuscrito pela metade e aceitasse a troca de título, considerado mais comercial.

O autor concordou. Em 1953, a primeira edição foi um sucesso inesperado. Era um livro que sintetizava algo já articulado por outros autores que participavam dessa sensibilidade no mesmo período, como Richard Weaver (“As Ideias Têm Consequências”), Whittaker Chambers (a autobiografia “Witness”) e o futuro Nobel de Economia Friedrich Hayek (“O Caminho da Servidão”).

Kirk, porém, fez algo que esses outros escritores não conseguiram realizar. Ele criou uma tradição. A partir de Burke, considerado a matriz da “mentalidade conservadora”, o livro mostra que há uma “diáspora” desse pensamento específico em relação à tirania do progressismo (algo diferente das virtudes do progresso humano).

A contraposição feita por Kirk é a crença em uma ordem eterna que se reflete em uma ordem espiritual, manifestada por uma política baseada na “prudência”, que tenta resistir à avalanche comandada pelos revolucionários radicais e os “intelectuais de gabinete”.

Entre os representantes mais célebres dessa oposição, Kirk elenca pensadores variados, como John Adams, Samuel Taylor Coleridge, Henry Adams, John Henry Newman, Irving Babbitt e T.S. Eliot.
Essa diversidade de referências foi apontada por críticos como a maior falha metodológica de Kirk. Afinal de contas, Edmund Burke nunca foi um tory (membro do antigo partido inglês de tendência conservadora), mas sim um whig (atuante do partido de linha liberal).

Além disso, o americano Henry Adams, com seu pessimismo assustador, não poderia ter muita relação com a busca desesperada por redenção de um Eliot. Contudo, para Kirk, é aí que se encontra a unidade na “diáspora”: justamente por causa dessa pluralidade de ideias, essas mentes tinham algo em comum —a procura incessante pela “imaginação moral”.

Para entendermos melhor o que significa esse termo, e porque ele é diferente da nossa mera imaginação, é necessário compararmos o livro de Kirk com uma outra obra, também lançada recentemente —a da historiadora americana Jill Lepore, “Estas Verdades: a História da Formação dos Estados Unidos” (Intrínseca).

Partindo de uma perspectiva explicitamente progressista, mas sem transformá-la em uma ideia fixa, Lepore relata uma América que é um duplo invertido da história narrada por Kirk. Se, para ele, John Adams foi um presidente magistral, para Lepore não passava de um político resmungão; se, na visão de Kirk, Andrew Jackson foi um bom presidente, na da historiadora representa o protótipo do populista que depois resultaria em Donald Trump. E se, em “A Mentalidade Conservadora”, Ronald Reagan é considerado um “estadista supremo”, em “Estas Verdades” o mesmo papel cabe a Barack Obama.

Contudo, em um movimento surpreendente para uma acadêmica que faz parte do mesmo establishment ao qual Kirk sempre se opôs, Lepore chega às mesmas conclusões do pensador conservador.

De fato, segundo sua perspectiva, a sociedade americana foi dominada pelos “intelectuais de gabinete”, os ideólogos disfarçados de publicitários, marqueteiros políticos e colecionadores de previsões equivocadas, que culminaram na morte da possibilidade de “navegar o navio do estado somente pelas estrelas”.

Assim, guardadas as devidas proporções na metáfora, isso seria o fim da mesma imaginação moral defendida por Kirk. Os diagnósticos convergem, mas Lepore tem uma vantagem: ela articulou o “abismo epistemológico” ocorrido no universo da política nesses últimos 40 anos.

“A nação [os EUA] se perdeu na política de destruição epistemológica mutuamente assegurada”, escreve a historiadora. “Não havia verdade, apenas insinuações, boatos e preconceitos. Não havia explicações razoáveis; apenas conspiração.”

Com o surgimento da direita alternativa (alt-right), em paralelo com a esquerda alternativa (alt-left), decorrentes da histeria provocada pelas redes sociais, tanto o conservadorismo de Kirk como o progressismo de Lepore dão as mãos na certeza de que a Declaração de Independência e a Constituição americanas estão completamente despedaçadas.

Enquanto esse “abismo epistemológico” começava a contagiar a sociedade ocidental, Kirk percebia que o seu tão querido conservadorismo não era mais suficiente para analisar o mundo.

Os últimos livros dele —suas verdadeiras obras-primas, como “A Era de T.S. Eliot” (1971), “The Roots of American Order” (1974) e a autobiografia “The Sword of Imagination” (1995)— mostram que, pouco a pouco, o estadista deveria ser semelhante a um poeta que articula os dilemas de se viver em um lugar em que seu fundamento filosófico, a imaginação moral, simplesmente desapareceu, substituído pela imaginação apocalíptica das teorias conspiratórias.

Nessa reviravolta, Kirk chega ao coração do dilema. Entende, no final da vida, que a imaginação moral não é apenas um modo de aceitar a falibilidade humana, mas também, e principalmente, a única forma necessária para encarar o grande problema que atormenta a todos nós, a despeito de nossa situação política: a morte o sofrimento.

Nesse sentido, a imaginação moral é mais do que “discernir acerca do que a pessoa humana pode ser, apreendendo, por alegorias, a correta ordem da alma e a justa ordem da sociedade, diferenciando o verdadeiro e o falso, o bem e o mal, o belo e o feio, além de oferecer uma correta visão da lei natural e da natureza humana”, como definiu Cleaves Whitney, estudioso da obra do autor. Ela é, de fato, a preparação filosófica para o nosso derradeiro fim.

Kirk explicita isso em uma carta datada de 1993, um ano antes de sua morte, endereçada à sua filha Andrea. “Estou de fato com a saúde debilitada; talvez eu consiga uma boa ajuda na clínica onde me trato, mas é também possível, entre nós, que o meu septuagésimo-quinto ano provavelmente seja o último em que estarei contigo. Escrevo isto não para alarmá-la, mas sim para prepará-la. Mas como você foi afortunada, Andrea, e eu também! Se este for o meu derradeiro ano neste planeta, eu e você estaremos juntos para isso, a escrever e a plantar flores no jardim e a caminhar e a ler e a conversarmos juntos, sempre contigo —a mais afetuosa das filhas.”

“Escrevo isto não para alarmá-la, mas sim para prepará-la.” Nesta singela frase está sintetizada toda a imaginação moral da obra de Russell Kirk —e o verdadeiro conservadorismo que ele tanto defendeu.

Já nosso presidente, mesmo orgulhoso de se afirmar conservador, fez o oposto de tudo isso. Jamais preparou o cidadão para a fatalidade da Covid-19, somente o alarmou, diminuindo a gravidade da doença e lançando conspirações atrás de conspirações.

Como se não bastasse, simboliza a permanência da total incapacidade do brasileiro de viver segundo os ditames da liberdade interior, a que edifica as instituições democráticas da liberdade exterior, o que contamina até mesmo nossas melhores mentes —é o caso do brilhante, porém antiquado, José Camilo de Oliveira Torres (1915-1973).

Segundo a ideia de liberdade interior, articulada por Platão e Santo Agostinho, antes de conquistarmos a ordem do mundo, precisamos dominar as paixões que perturbam a ordem da alma, para sermos, assim, indivíduos completos.

Bolsonaro, portanto, não é conservador, não é um indivíduo —e muito menos alguém completo. O pouco caso de seu governo, para dizer o mínimo, em relação a vacinas e à pandemia em geral exemplifica que ele fez com a “mentalidade conservadora” a mesma coisa dita pelo general francês Turenne, antes de ir para uma batalha decisiva em 1660, em uma frase que Nietzsche adorava citar: “Carcaça, tu tremes? Tremerias ainda mais, se soubesses aonde te levo”.

Daí que chegamos à resposta da pergunta que motivou este artigo: ainda vale a pena falar de conservadorismo com quase 600 mil mortes nas suas costas? Na verdade, o que temos no país não tem nada a ver com o que Russell Kirk ensinou aos leitores —e à filha Andrea, antes de falecer.

Temos somente uma carcaça, e ela é nossa. Seremos obrigados a carregá-la até o momento em que atravessarmos o vale em que estamos e, enfim, imaginarmos que há algum horizonte moral diante de nossos olhos.


Texto de Martim Vasques da Cunha, na Folha de São Paulo

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