quinta-feira, 9 de setembro de 2021

No 7 a 1 da democracia brasileira, chegou a hora de mostrar força moral


Em sua coluna de quarta-feira (8), Gregorio Duvivier propôs o 7 a 1 como origem do grande trauma descacetador que deixou o Brasil, humilhado e masoquista, à mercê de uma praga de gafanhotos em forma humana (humana?) chamada Bolsonaro.

Concordo com o diagnóstico. Sempre achei pouco inteligente varrer para debaixo do tapete a mais esculhambadora derrota da história do nosso outrora orgulhoso futebol, como se fosse só um tropeço cômico. Fugir do luto é roubada.

Sete anos separam o dia em que brasileiros de verde e amarelo lamberam sete vezes as chuteiras alemãs e o 7 de Setembro em que brasileiros de verde e amarelo, felizes com a gasolina a R$ 7, lamberam os coturnos de um aspirante a ditador que devia estar trancafiado a sete chaves.

Um dia a literatura vai destrinchar os fios psicossociais estendidos entre os dois episódios de falência moral. Hoje eu quero fazer o elogio de um aspecto negligenciado do 7 a 1: o gol do Oscar.

Quase todo mundo que eu conheço —e isso inclui alguns craques da crônica esportiva— despreza aquele gol. Trata-se de um erro grave, a meu ver.

Existe uma boa razão para que o gol solitário marcado por uma equipe derrotada seja chamado de “gol de honra” —ele a livra da desonra, só isso. É um feito insuficiente, mas imprescindível.

Se o gol de honra não altera em nada o resultado, planta no gramado a semente da vitória futura. Ao sinalizar algum poder de reação, atesta a existência de um solo mínimo de dignidade sobre o qual construir novas lutas.

Se tivesse perdido de 7 a 0 no Mineirão, o futebol brasileiro estaria acabado até o último minuto depois do Nada. Perder de 7 a 1 é infinitamente, incomparavelmente melhor do que perder de 7 a 0. E aquele gol o Oscar fez sozinho.

Pelas circunstâncias do funesto 8 de julho de 2014, prenúncio esportivo da desgraceira político-econômico-ético-social hoje instalada no país, é provável que nunca tenha havido um gol de honra tão honroso.

Faltavam só dez segundos para o relógio marcar 45 minutos do segundo tempo —acréscimos à parte, a própria definição do fim de papo. No placar, aquela conta de mentiroso. Nas arquibancadas, 60 mil almas estupefatas, dilaceradas, entregues.

Estava mais do que consumado o desastre. Já era digno de nota que os jogadores brasileiros ainda conseguissem andar em campo, sabendo que tinham seus nomes gravados na pedra de um vexame eterno.

Nesse momento, num contra-ataque, o lateral Marcelo lançou uma bola longa nas costas da adiantada zaga alemã na direção de Oscar, que estava na meia-esquerda, pouco além da linha do meio de campo.

O camisa 11 do Brasil correu atrás da bola, acompanhado por Boateng, e a dominou já no bico esquerdo da grande área alemã. O domínio veio acoplado a um corte largo em direção à marca do pênalti, que surpreendeu o zagueiro e deixou o brasileiro livre para chutar a meia altura, no contrapé do goleiro Neuer.

Não houve festa, nem poderia. Dois minutos depois, encerrada a partida, Oscar dos Santos Emboaba Jr. era o jogador que, desabado na grama, chorava com maior desconsolo.

Hoje quase esquecido, exilado no futebol chinês, o ótimo meia formado no São Paulo talvez nem saiba que, naquele dia, foi sua incrível força moral e nada mais que salvou o futebol brasileiro.

Diante de uma horda em que se misturam golpistas e malucos, bandidos e otários, fascistas e coitados, que nossos democratas saibam merecer aquele gol.


Texto de Sergio Rodrigues, na Folha de São Paulo

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