quarta-feira, 15 de setembro de 2021

Criar uma filha envolve inventar narrativas épicas, como um marqueteiro


De todos os ofícios que a paternidade impõe, nunca pensei que teria que me transformar num marqueteiro. Não tinham me contado que passaria os dias e as noites quebrando a cabeça pra envelopar experiências banais em narrativas épicas —e mentirosas.

É impossível convencer minha filha a tomar um banho puro e simples, mas o mesmo banho se torna irresistível quando apresentado como um "banho de princesa" —que é um banho idêntico, mas durante o qual ela é chamada de majestade. Desculpem os monarquistas, sei que o tratamento correto seria alteza,

e desculpem também os militantes antiprincesa, sei o quanto esse imaginário pode ser maléfico a longo prazo pra uma menina. Mas sei também do quanto um banho pode ser benéfico a curto prazo. Aqui em casa pesamos os prós e os contras e preferimos uma filha que terá que fazer psicanálise no futuro a uma filha com o cabelo cheio de nós cegos no presente.

A frase "hoje vai ter festa do pijama na casa da vovó!", assim mesmo, com muitas exclamações, soa muito melhor do que a verdade: "Papai e mamãe vão te dropar na vovó porque querem beber e acordar às dez da manhã sem nenhuma criança em casa". Tudo é uma questão de rebranding.

Escovar os dentes seria impossível se não fosse o ratinho do "Castelo Rá-Tim-Bum" –"quando eu pego a minha escova eu só penso em rock and roll, roc, roc, roc"— aquela animação em que a escova luta contra bichinhos imaginários. A única maneira de abrir sua boca é fazer com que ela imagine que está sendo travada ali dentro uma batalha do bem contra o mal. Além da pasta com gosto de tutti frutti, claro.

Tinha medo de não saber cozinhar pra criança —mas descobri que tudo é uma questão do que os publicitários chamam de storytelling. Não importa tanto o molho do macarrão quanto o fato dele ser uma receita especial mágica secreta de família, e por isso é vermelho! Sim, igual ao vestido da Mônica. E de sobremesa a melancia não é qualquer melancia, mas a melancia da Magali. E tudo isso sem pagar royalties pro Mauricio de Souza.

E cá estou eu, rindo da sua ingenuidade, enquanto tomo um café especial cujo rótulo garante que ele foi cultivado por uma linda família numa serra paradisíaca a 1.200 metros de altitude lutando contra o oligopólio dos barões do café, enquanto frito ovos agroecológicos oriundos de uma galinha que certamente, não restam dúvidas, teve uma vida digna.


Texto de Gregorio Duvivier, na Folha de São Paulo

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