terça-feira, 28 de setembro de 2021

Brasil das memoráveis crônicas de Joel Silveira é o mesmo Brasil do Twitter


Poucos dias antes do propalado 7 de Setembro, comecei a reler, ao mesmo tempo e ao léu, três livros de Joel Silveira (1918-2007): “Na Fogueira”, “A Feijoada que Derrubou o Governo” e “A Milésima Segunda Noite da Avenida Paulista”. O primeiro, um livro de memórias, e os dois outros, coletâneas de textos publicados originalmente na imprensa.

Como está atual, up-to-date, o velho Joel, o repórter-víbora, segundo Assis Chateaubriand. O Brasil de suas memoráveis reportagens e crônicas é praticamente o mesmo Brasil do Twitter. Na essência, na alma, porque o elenco piorou um bocado.

Por exemplo: a cena do jantar dos homens brancos e ricos que riem à toa, na casa do empresário Naji Nahas, poderia muito bem se encaixar na reportagem “Grã-finos em São Paulo”, de 1943.

Enquanto os presos políticos abarrotavam os porões do Estado Novo e a censura comia solta, “o milionário Lafer, o milionário Pignatari, o milionário Matarazzo, o milionário Crespi” bebiam uísque e jogavam cartas no salão do Automóvel Club, “um lugar triste como um cemitério”. A guerra que devastava a Europa, aliás, estava sendo ótima para os negócios. Nunca as fábricas haviam trabalhado tanto.

“Dia e noite os motores não param. Há uma turma de operários que passa o dia inteiro diante dos motores. Quando chega a noite, a turma vai embora, muito cansada, e chega outra que se cansará até de madrugada”.

No mordaz perfil da elite brasileira, o teso Joel, então com 25 anos, afundara os sapatos gastos em tapetes fofos, comera com talheres de prata, ouvira barbaridades: “Os rapazes se vestem muito bem e telefonam. Telefonam de cinco em cinco minutos e conversam com Lili, com Fifi, com Lelé”.

Ele não descreve, mas posso imaginar os vasos chineses e o papel de parede verde-musgo adornando os ambientes neoclássicos. Segundo Joel, o grã-finismo paulista “não perdoa a Semana de Arte Moderna”.

“São criaturas repletas de antepassados, aqueles senhores heroicos e sem muitos escrúpulos, que rasgaram as matas de São Paulo. Morreram todos, estão enterrados na história, mas deixaram um presente régio: um cartão de visitas.”

Hitchcock da imprensa

Ao longo da profícua carreira, Joel Silveira escreveu pelos cotovelos. São mais de 20 livros, que reúnem reportagens, perfis, crônicas, entrevistas e memórias. Sergipano de Lagarto, desembarcara no Rio de Janeiro no começo de 1937, aos 19 anos, sonhando com as rodas literárias da capital.

Primeiro, trabalhou na Dom Casmurro, revista de Brício de Abreu e Álvaro Moreyra. Em seguida, integrou o time de ouro de Diretrizes, revista fundada por Samuel Wainer, em 1938, que abrigou nomes como Rubem Braga, Jorge Amado, Graciliano Ramos, Carlos Drummond de Andrade, Raquel de Queiroz. Adalgiza Nery, Edmar Morel, Moacir Werneck de Castro, Otávio Malta, Carlos Lacerda, Augusto Rodrigues, Nassara.

Fora em Diretrizes que Joel Silveira virou repórter, convencido por Samuel Wainer. Queria mesmo era escrever contos, romances. Dono de um talento raro, acabou por juntar as duas coisas. Antes mesmo de Gay Talese, Truman Capote e Norman Mailer entrarem na moda com o “new journalism”, ele já dava seus pulos no jornalismo literário.

Usando recursos da ficção, abusando da metalinguagem, dos flashbacks e, principalmente, colocando-se na cena, como um Hitchcock da imprensa, legou-nos um interessante mosaico do século 20.

Joel Silveira estava lá, em todos os momentos importantes do país —e do mundo. E escreveu sobre todos eles. Em “O Diabo é Testemunha: Não Foi um Passeio” conta a vida no front da Segunda Guerra.

Em “A Feijoada que Derrubou o Governo” narra, a partir de um almoço na casa de um ministro de Jango, os bastidores de 1964. Em “Maio de 1952: O Integralismo Faz Tricô” discorre sobre a melancólica aposentadoria do fascismo. No texto intitulado “A Renúncia —ou a Verdade de Cada um. Inclusive a dele, Jânio”, bate um papo com o ex-presidente sobre o mistério de 1961.

Entre os muitos perfis da sua lavra —registrou encontros saborosos com todo mundo que importava, da política às artes— talvez o mais sensacional seja o de Antônio Carlos, o cacique do Partido Republicano Mineiro (“Os Andrada nunca se preocupam com dinheiro”), uma síntese dos velhos políticos e da velha política brasileira.

“Durante mais de quarenta anos de vida política, é possível que o presidente Antônio Carlos nunca tenha dito um não.”

A propósito: de Antônio Carlos, o autor da frase “façamos a revolução antes que o povo a faça”, a Michel Temer, os conservadores, que Joel costumava chamar de “liberalões que no fundo são reacionários”, perderam, e muito, em charme.

Na fogueira

O Sete de Setembro passou, com as ruas infestadas pelo “verde-amarelismo”. Nas memórias de Joel Silveira, volta e meia, eles saltam das páginas, os patriotas, uma gente que se apodera da bandeira do Brasil, do Hino Nacional, da moral, debatendo-se contra um comunismo irreal.

Diga-se de passagem, o roteiro vem se repetindo história afora: os golpistas da vez levantam a bandeira da moralidade pública, a classe média compra e a democracia vai para as cordas. Como bem dizia Paulo Francis, o brasileiro é, sobretudo, o sujeito que gosta de chamar o outro de ladrão.

Quantos golpes testemunhou o Joel? No duro, três, se considerarmos a Revolução de 30 um golpe, o que, de fato, foi. Portanto, 1930, 1937 e 1964. Em 1945, ele vira Getúlio Vargas cair. Em 1950, voltar, nos braços do povo. Em 1954, o tiro no peito, que, no fim das contas, serviria para puxar a toalha do banquete dos golpistas, que acabariam por triunfar em 1964.

Um ano depois, em 1955, o contragolpe do marechal Lott, garantindo a posse da vitoriosa chapa JK-Jango. Em 1961, Leonel Brizola levantara o país contra a tentativa de quartelada que se seguiu à renúncia de Jânio Quadros. Enfim... a lista é praticamente infinita, se contarmos as investidas mal sucedidas.

Se tem uma coisa que o livro de memórias do Joel Silveira ensina é que os golpes de Estado sempre vêm acompanhados de surpresa. Mesmo debaixo da tempestade de indícios, ninguém acredita.

Lembrai-vos de 37, dizia-se à época. Desde 1934, com a promulgação da nova Carta, a mais breve da nossa história, Vargas vinha governando como presidente constitucional, após três anos do governo provisório instaurado pela Revolução de 30. Porém, a partir da Intentona Comunista, de 1935, com a desculpa de combate aos bolchevistas, já passara a abocanhar nacos da lei.

No fim da tarde de 10 de novembro daquele 1937, com os amigos Daniel Bastos e Wilson Lousada, Joel partira para um convescote no elegante apartamento de Brício de Abreu, no Catete. O programa da noite era ouvir o pronunciamento do presidente. O dia havia raiado com tropas na rua e a notícia da morte precoce da Constituição de 34. No lugar, a Constituição de 1937, logo apelidada de “Polaca”. Escrita por um homem só, Francisco Campos, o Chico Ciência, a Carta era inspirada na fascista Constituição de Abril, da Polônia.

“Pausado, paternal, Vargas explicava: havíamos sido salvos do caos iminente, do desmoronamento do estado, da anarquia, da hidra comunista. Enfim, da iminente catástrofe que, não fosse detida, nos levaria sem dúvida à perdição eterna. Mas que todos nós, trabalhadores do Brasil, ficássemos tranquilos. Ele, Vargas, e mais a sua guarda pretoriana, passariam a velar por nós”

Inventado o autogolpe e instaurado o Estado Novo, o que mais podia se fazer? Beber a saideira no “49”. Enquanto iam jogando conversa fora, na caminhada entre o Catete e a Lapa, Joel só pensava em Brício de Abreu: “Não nos serviu nem uma bolacha”. De estômago vazio, o conhaque caíra-lhe como uma bomba. Mal conseguia andar em linha reta.

"Não resta dúvida: já estamos em plena ditadura".

"Não me diga!"

"Vai ser uma merda total"

"Com a porcaria do Congresso abrindo as pernas para tudo, o que se poderia esperar?"

"E agora?"

"Sei lá."


Texto de Karla Monteiro, na Folha de São Paulo

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