quarta-feira, 8 de setembro de 2021

Inércia diante de Bolsonaro se alimenta da tese de que está tudo normal


A reação mais natural das pessoas, acho eu, é sempre achar que nenhuma catástrofe vai acontecer. O “realista” tem argumentos fortes a seu favor.

Afinal, a semana passada foi igual à semana anterior, o mês passado não foi diferente do que veio antes. A realidade é um troço bastante estável, e a rotina, porque é rotina, em geral se confirma e se repete.

Acidentes podem acontecer, admite-se, mas o normal é que não aconteçam. Caso contrário, não seriam acidentes. E assim vamos indo, um dia depois do outro. O problema é que isso também serve para justificar muita inércia frente ao governo Bolsonaro.

O mecanismo tem se repetido desde a eleição. Bolsonaro não representa risco para a democracia, dizia-se, “porque as instituições estão funcionando normalmente”.

Tudo, claro, é uma questão de grau. Posso dizer que, se as instituições estivessem indo tão bem assim, um maníaco sem partido não teria sido eleito presidente. Poderia dizer, também, que os generais golpistas que o apoiaram não teriam ficado sem punição.

A tese do “tudo normal” se repetiu logo em seguida. “Bolsonaro pode querer dar um golpe, mas os militares não vão deixar.”

Só o fato de se fazer esse raciocínio já é prova que as coisas não se mostram tão normais assim. Numa situação normal, seria muito difícil eleger um cidadão suspeito de querer dar um golpe militar.

Numa situação normal, o que se diria é: “ele pode querer dar um golpe, mas a sociedade não vai deixar”. Ou qualquer outra coisa do gênero: “O povo não vai deixar”. “As ruas não vão deixar.” “O Congresso não vai deixar.”

Mas não. Ficamos todos esperando, ou torcendo, ou rezando, para que “os militares não deixem” Bolsonaro acabar com a democracia.

Enquanto isso, Bolsonaro põe milhares de oficiais em cargos do governo, sendo revelado pela Folha que no mínimo dobraram o seu salário ao trazer sua “expertise”, sua formação técnico-profissional e seu patriotismo a estatais como os Correios, a Casa da Moeda e uma tal Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares.

O erro, imagino, foi não ter emplacado um general para a Fiocruz. Seja como for, depois da imposição de um pancrácio da ativa no Ministério da Saúde, fica esquisito achar que os militares desejam ficar nos quartéis; ou que tenham críticas a Bolsonaro.

Mas continuamos ouvindo a música da “normalidade”, que tem a vantagem de nos deixar tranquilos no nosso conforto doméstico.

Sim, houve panelaços e manifestações contra o presidente, nada pequenas.

Só que, depois de um impacto inicial, não desencorajaram Bolsonaro de ir adiante. E assim voltamos para casa, depositando esperanças nas iniciativas de Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso.

Ainda bem que eles existem. A atitude da sociedade, contudo, não tem sido tão corajosa como a desses dois ministros.

Continua a valer a passividade do “tudo normal”; uma espécie de espera, em que dizemos: “Hum, tomara que o Alexandre de Moraes descubra alguma coisa!”. Ou, com mais otimismo: “Uma hora pegam o Bolsonaro e os filhos dele”.

Enquanto isso, vamos tocando.

Cansei de contar as ocasiões em que a oposição fez corpo mole para pedir o impeachment. “Não vamos pedir, porque não vai ter impeachment, não tem como.”

Dada a falta de pressão popular, é até um milagre que o Senado tenha levado adiante a CPI da Covid e que seu presidente tenha rejeitado o processo contra Alexandre de Moraes. Ou que a proposta do voto impresso tenha caído na Câmara dos Deputados.

Mas é o suficiente para o bolsonarismo pôr em movimento sua massa de alucinados, a broncolândia do agronegócio e os capangas que arregimenta nas polícias militares e nas milícias.

Curioso que seja o presidente quem diga que a corda está para se romper; que seja ele quem fale em democracia, liberdade de expressão e respeito às regras constitucionais; e que um bando de idiotas, de loucos, de histéricos pró-Trump, de matadores de índio e de destruidores de floresta monopolize o uso da camisa da seleção e da bandeira nacional.

“Normal?” Normal seria que uma sociedade democrática, adulta e civilizada dissesse, há muito tempo, que é Bolsonaro quem rompeu a corda, e o pusesse em seu devido lugar, que é a cadeia.


Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo

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