A lágrima clara sobre a pele escura.
Pensei neste trecho da grande música de Caetano e Gil ao ver a espetacular foto de Jorge Penha, pai de Roberto, um dos cinco jovens negros metralhados pela PM do Rio. O autor da foto é Guilherme Pinto, do Extra.
Depois tive um desabafo tolo, emocional. “Até quando, até quando?”, pensei.
E depois notei a semelhança entre Jorge, o soldador, e Joaquim Barbosa.
E então vi quanto Gregório Duvivier definiu bem o país, dias atrás, com esta frase: “Crime é ser pobre no Brasil.”
Joaquim Barbosa não haverá de experimentar a dor colossal que enfrenta Jorge, o soldador, seu quase sósia.
Porque não é pobre.
O filho de Joaquim Barbosa acabou confortavelmente empregado na Globo. E o filho de Jorge está prestes a ser enterrado cheio de furos provocados por rajadas.
O habitat do filho de Joaquim Barbosa é o da classe média alta do Rio. O habitat do filho de Jorge era a favela.
Era de Roberto, o filho de Jorge, a comemoração que antecipou a tragédia. Seu primeiro emprego assinado. A carteira de trabalho enfim preenchida. E os sonhos que a gente só tem aos 16, mesmo quando vive a realidade terrível das favelas.
Roberto tinha 16.
Tenho a suspeita de que para muitos de nós, os privilegiados, há uma crença de que a morte é menos doída para eles, os outros.
Lembro uma vez em que, como editor da Exame, almocei com Mário Simonsen, um dos ministros da Economia da ditadura. Simonsen falou da China, e afirmou que os chineses sentem menos a morte de um filho do que nós. Provavelmente ele tinha sido intoxicado pela literatura ocidental que tratava das guerras de destruição movidas contra a China sobretudo pelos britânicos, no século 19.
Hoje não é diferente. É como se a morte de uma criança no Iraque, ou na Líbia, ou no Paquistão, doesse menos que a morte de uma criança nos Estados Unidos, ou na França, ou na Inglaterra.
E então nos lobotomizamos diante da dor alheia, como a de Jorge, o soldador.
Em países igualitários cada cidadão importa. A Janteloven escandinava, um conjunto de regras que moldam a vida na região, estipula o seguinte: eu não sou melhor que você e você não é melhor que eu.
Mesmo que você seja um banqueiro e eu um lixeiro.
Mas não somos exatamente igualitários. Somos a desigualdade levada a extremos desde sempre. Nem na morte nos igualamos. A morte deles vale menos que a nossa.
Nós nos desesperamos quando perdemos um filho. Eles não sofrem. Era assim que Simonsen via os chineses, em sua descomunal miopia de homem do Ocidente.
É assim que vemos casos como os dos cinco garotos do Rio.
Somos bombardeados com a falácia de que o mal maior do Brasil é a corrupção. E mais uma vez somos lobotomizados diante dos horrores da desigualdade.
A favela é filha da desigualdade.
Os meninos que nascem nela terminam frequentemente como o filho de Jorge, o soldador. Não têm chance.
E ainda ousamos falar em meritocracia. E ainda somos obrigados a ouvir uma autoridade dizer quetalvez policiais assassinos sejam expulsos. Talvez.
Panelas não baterão pelo filho de Jorge, o soldador. E nem pelos filhos de tantos outros homens e mulheres invisíveis.
Mas o silêncio, este silêncio magicamente representado pelas lágrimas claras na pele escura de seu Jorge, este silêncio soa mais alto que o som de um milhão de panelas.
Reprodução de texto de Paulo Nogueira, no Diário do Centro do Mundo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário