sábado, 12 de dezembro de 2015

Fatos e pretexto

Numa coisa todos concordam: o processo de impeachment é "eminentemente político". Seu desfecho, em última análise, depende da base parlamentar em favor de Dilma e das mobilizações da sociedade.
Muito bem. O que me parece estranho é que a justificativa para o impeachment se mostra o inverso disso. É "eminentemente técnica".
Já não era simples entender as "pedaladas fiscais". Surgem agora os "decretos não numerados", que complicam ainda mais a argumentação.
Se entendi bem, a acusação se baseia no fato de que Dilma determinou por decreto, sem consulta ao Legislativo, uma série de gastos mesmo sabendo que não havia dinheiro para isso.
Quais foram esses gastos, quais foram os decretos? Num sinal, talvez, de que ninguém se lixa muito para o caso, a informação não é das mais correntes por aí.
No site Fato Online, leio que se destinaram, por exemplo, R$ 693 milhões "às Justiças Eleitoral e do Trabalho e a órgãos do Executivo" e pouco mais de R$ 1 bilhão a ministérios como Previdência, Saúde, Cultura e Combate à Fome.
Surpresa: um decreto foi assinado pelo vice-presidente Michel Temer. De modo que, afastada Dilma Rousseff, poderemos logo em seguida nos dedicar ao impeachment do seu sucessor.
No site G1, da Globo, é possível encontrar os argumentos da Advocacia Geral da União (AGU), justificando os tais decretos.
"A AGU afirmou que não há proibição legal para o procedimento, desde que a verba adicional liberada pelos decretos esteja dentro do limite de movimentação financeira de cada órgão, no caso de despesas discricionárias (de livre destinação), e previstas em relatório de avaliação bimestral de gastos, no caso das obrigatórias."
Entendeu? Eu não.
Concordo que alguma medida deve ser tomada quando um governante não cumpre as normas da responsabilidade fiscal. Mas cada vez que se fala no "caráter eminentemente político" do impeachment, convenço-me que toda a movimentação em torno das pedaladas e dos decretos não passa de um pretexto, de uma artificialidade.
Sem dúvida, o impeachment de Collor foi também "eminentemente político". Podemos rir, hoje em dia, do Fiat Elba e das despesas no jardim da Casa da Dinda. Obviamente, não foram estas as causas fundamentais do impeachment. Mas eram fatos, e não apenas pretextos.
Como assim? Os decretos não são "fatos"? Admito. Mas seu caráter de "pretexto" me parece mais claro se formularmos a questão do seguinte modo. "Dilma não pode continuar na Presidência. Por quê? Porque, se ficar, continuará gastando sem autorização do Congresso e agravará o déficit público."
Não é plausível essa hipótese. Por menos que, pessoalmente, Dilma queira empreender uma política de austeridade, é nisso o que aposta –fanaticamente até– o seu ministro da Fazenda; e é o Legislativo quem não quer saber de cortes, reformas e novos impostos.
O que se quer com o impeachment tem pouco a ver com Dilma, e sim com o PT. Que seja. É mais corrupto do que o PMDB, a quem se dará o prêmio da presidência?
Ah, sim, argumenta-se. Pois a corrupção do PT é "sistêmica", e visa a um "projeto de continuidade no poder".
Confesso que não entendo o escândalo em torno dessas palavras. Quando quis a reeleição, Fernando Henrique visava a "continuidade no poder". Renan Calheiros, ACM, Sarney são ou foram mestres em "continuidade". Que digo? E o PSDB paulista?
Sim, os defeitos dessa turma não justificam as roubalheiras do PT. Admito que o argumento é forte. Se eu for pego numa falcatrua e disser que outros fazem o mesmo, isso seria puro cinismo.
O caso muda um pouco de figura, entretanto, se eu, sem ter nada a ver com roubalheira nenhuma, preferir o ladrão A em vez do ladrão B. Outros motivos, que não a busca pela honestidade, estarão provavelmente orientando minha atitude.
"Tiremos Dilma, porque assim haverá solução política para a crise". Talvez. O conflito político pode agravar-se mais ainda, com a convicção de muitos de que tudo não passou de golpe.
Há outros fatores, tão ou mais importantes do que Dilma, na atual crise. A Operação Lava Jato produz crises a cada semana, não recaindo necessariamente apenas sobre o PT.
Talvez outro governante tenha meios de abafar as investigações. Aí, claro, ninguém mais precisará falar de impeachment.


Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo

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