Nasci no Brás, durante a Segunda Guerra Mundial. Da rua em que morávamos até a Praça da Sé, são 20 minutos de caminhada.
Quando estava com sete anos, acordei com os olhos inchados, e meu pai me levou ao pediatra.
Ao voltarmos, o futebol ininterrupto que jogávamos com bola de borracha na porta da fábrica em frente parou, e a molecada correu até nós. Queriam saber se era verdade que os médicos davam injeções enormes na bunda das crianças.
Nenhum daqueles filhos de operários, meus irmãos ou eu haviam ido ao pediatra; só os fortes sobreviviam, a morte de crianças era aceita com resignação. Em várias regiões do país, a mortalidade infantil ultrapassava uma centena para cada mil nascidos.
Se a assistência médica não chegava ao Brás fabril, o primeiro bairro da zona leste, encostado no centro da cidade que mais crescia na América Latina, que cuidados recebiam aqueles da zona rural, que constituíam mais de 70% da população?
Sarampo, caxumba, catapora, difteria e tosse comprida eram "doenças da infância", tão inevitáveis quanto a noite e o dia. Qualquer episódio de febre que deixasse a criança apática, enlouquecia as mães, apavoradas pelo fantasma onipresente da poliomielite. O som metálico das próteses que acompanhava os passos de meninas e meninos era ouvido em toda parte.
São Paulo insistiu em seu delírio de grandeza. Nos 20 anos seguintes, afluíram milhões de migrantes que fugiam da miséria. No fim da década de 1960, eram 300 mil novos habitantes por ano que se aglomeravam na periferia inchada, carente dos serviços públicos mais elementares.
Nessa época, fiz internato e residência no Hospital das Clínicas, que recebia pacientes do país inteiro. Sofriam de tuberculose, esquistossomose, Chagas, leishmaniose, malária, filariose. A prevalência de vermes intestinais na idade escolar ultrapassava 90%. Tínhamos uma ala exclusiva para tratar de crianças subnutridas. No Emílio Ribas, havia uma enfermaria para os casos de varíola, erradicados do mundo nos anos 1990.
No Pronto Socorro de Pediatria, os bebês com diarreia e desidratação eram atendidos numa sala com 30 berços, ao lado dos quais as mães passavam os dias e as noites em vigília. Morriam quatro ou cinco em cada plantão de 12 horas. No final, íamos embora deprimidos e revoltados contra a perversidade daquela ordem social.
Em 1988, o SUS passou a fazer parte da Constituição. Nós nos tornamos o único país com mais de 100 milhões de habitantes que ousou oferecer saúde para todos.
Apesar de termos esquecido de onde sairiam os recursos para tamanho desafio, dos descasos, das interferências políticas que geram desmandos administrativos e corrupção, hoje são raras as crianças sem acesso a pediatra.
Em contraste com as imagens de unidades de saúde caindo aos pedaços e pronto socorros com doentes no chão, as equipes do Saúde da Família atendem de casa em casa a maior parte do país continental. Temos o maior programa gratuito do mundo de vacinações e de transplante de órgãos. A distribuição universal de medicamentos para a Aids não só impediu que a epidemia se transformasse em catástrofe nacional, como serviu de base para o combate em países da África e da Ásia.
Se pensarmos que nos tempos desassistidos de minha infância o Brasil tinha 50 milhões de habitantes, enquanto hoje somos 200 milhões, a assistência médica deu um salto quantitativo e de qualidade muito superior ao de outras áreas sociais, apesar do subfinanciamento e de todas as deficiências gerenciais.
No século 21, os desafios para prestar assistência universal a uma população sedentária que envelhece, engorda e ainda fuma são imensos. Não se trata apenas de continuar com as vacinas, saneamento básico e o combate às doenças infecto-parasitárias, agora lidamos com as bactérias resistentes e as complexidades da hipertensão, diabetes, ataques cardíacos, derrames cerebrais, Alzheimer.
O atual modelo estatizado, paquidérmico e perdulário do sistema único precisa ser repensado. Existem formas mais modernas de administrar e de obter recursos para impedir que o SUS se transforme num sonho fracassado dos visionários que o criaram no século 20.
Texto de Drauzio Varella, na Folha de São Paulo.
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