domingo, 6 de dezembro de 2015

O amigo guarda, o guarda amigo

Quem já foi a Milão, na Itália, e visitou a galeria Vittorio Emanuele, importante ponto turístico localizado bem no centro da cidade, certamente os conhece. São policiais (carabinieri) que dão guarda no local, mais, também eles, como atração turística do que para fazer policiamento mesmo. São elegantésimos, altos, fortes, com a farda de gala impecável e quepes invocadíssimos. Sorriem, dão informações e atendem a pedidos dos turistas para tirar fotos, são cultuados pela população local e têm significado duplo em seu simbolismo: autoridade e cordialidade - na verdade, o que se espera de uma cidade civilizada.
Quem viveu o final dos anos 1960 na cidade de São Paulo certamente os conheceu. Eles davam guarda na entrada dos cinemas mais importantes, sempre tinha uma dupla na porta do Teatro Municipal em noites de concerto, nas repartições públicas estavam sempre por ali, altaneiros e solícitos, não tão elegantes como os Armani italianos, mas em muitos casos também eles engalanados, luvas brancas e espadim na cintura.
Eram guardas civis, integrantes de uma corporação tão importante para a segurança da cidade quanto valorizada e querida pelos habitantes; eram o arquétipo do amigo guarda, ou do guarda amigo, que cumpria o papel definido pelo seu nome: guardava mesmo, a cidade e as pessoas e participavam ativamente, nem sempre em trajes de gala, claro, do dia-a-dia da urbe, junto ao comércio, aos eventos esportivos e culturais, policiando praças e ruas, sempre disponíveis à população.
A "guarda civil" municipal que há hoje na cidade de São Paulo, ostensiva e repressora, não é nem um arremedo do que havia na cidade 50 anos atrás; trata-se, isto sim, de uma imitação mal desenvolvida, e com os mesmos vícios militaristas, da Polícia Militar do Estado.
Numa reforma promovida em 1970, tempos da ditadura militar e por ela fortemente apoiada (com a retaguarda do famigerado AI -5), a Guarda Civil de São Paulo foi extinta. Seus quadros ou aderiam ao novo status quo e mudavam-se para a Força Pública (que virou PM) ou prestavam concurso público para tornar-se detetive, escrivão ou delegado da Polícia Civil. Ou mudavam de ramo.
Tenho um primo que adorava ser Guarda Civil, era querido no bairro e tinha orgulho de ostentar a bela farda azul-marinho com botões dourados. Ele se recusou, como disse à época, a "virar meganha", tornou-se primeiro escrivão e depois advogado, era cordial e prestativo demais para as novas funções.
Porque a Polícia Militar não seguia, tampouco segue, a mesma lógica de prioritariamente guardar a cidade e os cidadãos. Obedecia, e de alguma maneira ainda obedece, à lógica dos militares que estavam no poder central e comandavam de maneira tentacular Estados e Municípios. Ou seja, a polícia tinha mais é que "proteger" o regime daqueles que significavam algum tipo de ameaça ao que eles chamavam de "ordem pública": a ordem que garantia a manutenção do regime, que era antidemocrático, repressivo, desrespeitava o estado de direito, prendia, torturava e tudo o mais que se sabe.
Passados 30 anos da redemocratização do país, a Polícia Militar dos Estados, em maior ou menor escala, segue sendo a instituição que mais guarda semelhança com as práticas do passado, pautadas na força e na extrapolação de suas funções.
A de São Paulo (e a do Rio também...) é exemplar. Independentemente dos bons e profissionais quadros que existem em suas fileiras, predomina a sensação de tudo poder, de impunidade, a prática de reprimir primeiro para perguntar depois, a arma sempre pronta para entrar em ação. As exceções são realmente isso, exceções.
Mas a favor PM de São Paulo deve-se dizer que ela tem terreno fértil para agir como age porque frequentemente é colocada em situações para as quais não está preparada, nem deveria, como lidar com alunos adolescentes de escolas públicas. O resultado é o esperado e o que se tem visto fartamente nos últimos dias: porrada, bombas, prisões. É isso que ela faz há décadas e o que vai continuar fazendo porque não sabe fazer de outro modo: repressão e truculência, correspondendo aliás à expectativa da parcela mais conservadora da população para quem uma ordem, assim genérica, tem que ser mantida a qualquer custo. Na mesma lógica de que "bandido bom é bandido morto".
Distante, portanto, muito distante do tempo em que havia o guarda da rua, que era chamado pelo nome e sabia o nome dos moradores a quem deveria proteger e guardar.


Texto de Luiz Caversan, na Folha de São Paulo

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