domingo, 6 de dezembro de 2015

Boa noite e boa sorte

A censura é um mecanismo de controle do pensamento, da opinião e da criação que, de uma forma ou outra, com mais sutileza ou agressividade, é exercido em todas as sociedades e tempos históricos desde que o homem civilizado viu nascer as sociedades de classe.
Quer sejam de caráter político, ideológico, econômico, social ou étnico, os grupos de poder sempre procuraram deslocar a imagem de sua sociedade, classe ou estrato em direção ao ângulo que beneficie seus interesses e imagem.
Então aplicaram seus mecanismos de poder para impedir, ou pelo menos dificultar, a livre circulação de ideias, conceitos, propostas e avaliações que sejam de alguma maneira inadmissíveis ou prejudiciais à imagem que desejam patentear de sua própria entidade.
Ao mesmo tempo, como uma contrarresposta a possíveis interpretações que se julgue desfavoráveis, incentiva-se e promove-se uma imagem de homogeneidade intelectual, social, artística e religiosa que se quer estabelecer e validar de maneiras mais ou menos drástica, mesmo que falsa. E o efeito mais nocivo é que, diante da falta de critérios diversos, limita-se a capacidade de progresso e melhoramento social.
Ao longo da história, houve sociedades em que os limites do permissível nas áreas do pensamento e da cultura estiveram muito claramente definidos, sendo inclusive estabelecidos com documentos precisos. Em tais casos, as instituições ou instâncias censoras apenas se encarregaram de cumprir um encargo recebido e velar por sua aplicação.
Em outras sociedades, pelo menos aparentemente mais abertas e democráticas, um tribunal censor poderia representar uma ofensa às liberdades sociais e individuais pelas quais se lutou durante tantos séculos.
Em muitas ocasiões, porém, a censura se fez presente por mecanismos menos visíveis, mas igualmente eficientes, como as preferências do mercado, ou os discursos éticos quase sempre fundamentalistas, às vezes muito visíveis, que se sentem ou se apresentam autorrespaldados por sua missão de guardiões do bom estado moral da sociedade, cuja integridade supostamente defendem.
O maior mal que a censura pode causar não é a proibição, propriamente dita, que por si só já constitui uma aleivosia em uma sociedade democrática: é a autocensura como forma de sobrevivência dos indivíduos, que, cientes dos limites da permissibilidade, veem-se compelidos a ater-se a esses limites e restringem seu pensamento, criação e expressão verdadeiros, deformando-os ou simplesmente ocultando-os.
O indivíduo autocensurado entra no sistema, participa dele, mas o faz coberto pela máscara de seu silêncio ou de sua voz autorregulada. E essa é uma atitude que também se repetiu ao longo da história e que se pratica hoje em muitos lugares. Como recordou recentemente um colega, foi Mark Twain que, com sua acidez habitual, disse: "Graças ao bom Deus temos em nosso país estas três coisas indizivelmente preciosas: a liberdade de expressão, a liberdade de consciência e a prudência para nunca exercer nenhuma das duas".
Hoje, uma das formas de censura mais praticadas, por acreditar-se que seja menos evidente, é a invisibilização de pessoas cujo pensamento e cuja imagem os grupos de poder midiático, político ou social não querem que sejam promovidos.
Mas no mundo atual essa pretensão muitas vezes carece de sentido (embora não deixe de ser efetiva), pois as alternativas abertas pelo universo digital e das comunicações criam buracos quase impossíveis de serem preenchidos pela eficiência dos mecanismos de censura e controle, incluindo esse. O mundo de hoje é grande demais e, ao mesmo tempo, pequeno, interconectado.
Seja qual for a estratégia que emprega, a censura é um mal social, e a autocensura, uma laceração da dignidade humana. E ambas são males sociais.
Devo recordar, não obstante o que foi dito acima, que todas as sociedades, especialmente as mais permissivas, sempre precisam impor certos limites às liberdades de uma expressão que, se forem ultrapassadas certas fronteiras, pode tornar-se ofensiva a determinados setores do organismo social.
Porque existem cânones éticos que precisam ser invioláveis e proteções legais que se supõem serem estabelecidas pelo contrato social que a convivência civilizada forjou. Expressões de racismo ou superioridade étnica, de homofobia, de xenofobia, de atitudes que poderíamos descrever como fascistas ou fundamentalistas (em suas muito diversas vertentes), não devem ter lugar em uma sociedade moderna, por mais democrática e aberta seja, pois ferem o direito e a integridade de outros.
Boa noite, e boa sorte.


Texto de Leonardo Padura, na Folha de São Paulo. Destaque do blogueiro. 

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