sexta-feira, 10 de maio de 2013

Mistérios do aborto


Fico um pouco incomodado quando os defensores do aborto dizem que o tema deve ser analisado "como questão de saúde pública".
Claro que é questão de saúde pública. Mas dizer isso só faz sentido quando todas as outras questões já foram resolvidas. Para quem considera o aborto um atentado à vida humana, ou seja, como algo próximo do assassinato, não adianta nada falar em saúde pública.
Se a polícia fizesse uma "blitz" nas clínicas clandestinas, e prendesse todos os "fazedores de anjinhos", também a famosa questão da "saúde pública" estaria resolvida em grande parte.
Além disso, o objetivo dos antiabortistas é convencer as gestantes de que elas não devem cometer um ato, em última análise, criminoso. Estariam livres, ademais, dos graves riscos que esse ato implica.
Falar em termos de "saúde pública" equivaleria, nessa mentalidade, a se preocupar com o mau funcionamento das armas de fogo. Podem explodir nas mãos do assassino. Cumpriria às autoridades zelar para que não ocorra esse tipo de acidente.
Claro que nenhum antiabortista leva seu raciocínio a esse extremo. Mas não tenho dúvidas de que recebe mais ou menos assim o tal discurso da "saúde pública". Para ele, o problema da saúde pública está eliminado por princípio, uma vez que a ninguém é permitido abortar.
No fundo, a tese da "saúde pública" é uma contorção lógica, uma daquelas maneiras típicas de colocar o carro na frente dos bois. Os marqueteiros políticos são excelentes nesse gênero de eufemismos.
Provavelmente, a ideia só ganhou o destaque que possui hoje em dia porque se tornou, nos debates, a resposta padrão dos candidatos que são a favor do aborto.
Do lado oposto, achei interessante um artigo recente de dom Odilo Scherer no "Estado de S. Paulo". Sua intenção, em si louvável, foi retirar da discussão qualquer aparência dogmática e religiosa.
Pelo que entendi do que escreveu o arcebispo de São Paulo, a questão independe da crença que se tenha na Bíblia ou na existência da alma. Diz respeito aos direitos humanos.
O direito à vida, inscrito na Constituição, teria de ser especialmente respeitado nesse caso --uma vez que a vítima do aborto é a mais indefesa das vítimas.
Nada melhor, do meu ponto de vista, do que eliminar da discussão o seu aspecto religioso. Mas criticar o aborto em termos de "direitos humanos" me convence.
O embrião é sem dúvida uma vida humana. Mas não consigo me convencer de que seja uma pessoa. Pode alguém ser uma pessoa antes de nascer? Pode alguém ser "alguém" antes de nascer? Seus direitos nascem antes do nascimento? Como posso dizer que sejam "seus"?
A questão é totalmente subjetiva. Envolve um "reconhecimento" de pessoa para pessoa. Não consigo "reconhecer" no embrião uma pessoa como eu. No feto, provavelmente sim, e me chocaria ver aqueles filmes em que um ser vivo com dedinhos e pezinhos se debate para não ser abortado.
A tese dos "direitos humanos" tende a um impasse quase "materialista" --termina nas profundidades do microscópio. Não vejo como prosseguir a partir daí. Mas andei lendo algo que oferece uma saída --das mais religiosas-- para quem quiser criticar o aborto.
Numa antologia de poesia cristã francesa recentemente publicada, "O Rumor dos Cortejos" (Editora Fap-Unifesp), traduzem-se versos de uma das "Cinco Grandes Odes" de Paul Claudel (1868-1955).
Ele escreve sobre o mistério da graça cristã. "Tu me chamas a Musa e meu outro nome é a Graça, a graça que se traz ao condenado", dizem os versos.
"Não há mais que este amor que existe entre mim e ti", continua Claudel. "Não me escolheste, fui eu que te escolhi antes que nasceras. Entre todos os seres que vivem sou a palavra de graça endereçada apenas a ti (...) Eis que fui a teu encontro como a misericórdia que abraça a justiça (...) Não busques confundir-me. Não tentes dar-me o meu em teu lugar. Pois é a ti que peço."
Ou seja, a graça, a salvação da alma, consiste num ato divino de amor a mim que precede o meu próprio nascimento. Naturalmente, a dificuldade de acreditar numa coisa dessas é proporcional à beleza de toda a concepção.
Antes de nascer, eu não era nada. "Era sim", responde a Graça. Não é um raciocínio que me convença a ser contra o aborto. Mas, pelo menos, me faz entender porque a religião é tão importante para quem discute do tema.

Texto de Marcelo Coelho, para a Folha de São Paulo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário