terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Após guerra, minoria tâmil reconstrói cidade em uma Sri Lanka pouco tranquila

Quando entro em Jaffna, o pó do cimento me faz tossir. A cidade, localizada no extremo norte do Sri Lanka e coração cultural da minoria tâmil, está sendo reconstruída depois de 30 anos de guerra.

As casas da cidade já foram lindas um dia. Havia elefantes de pedra sobre os pilares dos portões, e as casas mais pobres exibiam telhados trabalhados com palha de folhas de palmeira. As novas casas parecem mais caixas de concreto. Após anos de trauma, as pessoas estão reconstruindo a cidade com uma firme determinação, mas sem poesia.

Eu deixei Jaffna em 1983 – ano em que a guerra civil começou no Sri Lanka – para viver com os meus pais na Inglaterra. No início da década de 1980, dentro das casas geminadas de Wembley, East Ham ou, no nosso caso, de Cardiff, as crianças corriam pelo assoalho de linóleo enquanto os adultos conversavam em tâmil sobre um lugar chamado Eelam.

Eelam era um país que não existia – o nome tâmil para uma pátria independente esculpida no nordeste do Sri Lanka. A guerra civil opôs os Tigres de Libertação de Eelam Tâmil, ou LTTE – movimento separatista que se dizia representante da minoria hindu de língua tâmil da ilha, formada por pouco mais de um décimo da população do Sri Lanka –, e um governo dominado pela maioria budista de língua cingalesa, composta por cerca de 75% dos 20 milhões de habitantes do país.

Eu retornei ao Sri Lanka pela primeira vez desde que o conflito terminou com meu marido e nossos dois filhos pequenos. Eu queria ver se conseguia encontrar a casa que meu avô construiu e onde passei os anos mais felizes de minha infância. Acima de tudo, eu voltei para me certificar se a paz nacional vai se manter – e para descobrir se ela realmente tem que ser mantida.

A guerra começou oficialmente quando centenas de civis tâmeis foram mortos em distúrbios em Colombo, a capital do país, após os Tigres Tâmeis terem assassinado 13 soldados. Mas o conflito não aconteceu de repente. As décadas que se seguiram à independência do Sri Lanka, ocorrida em 1948, trouxeram uma crescente tensão e violência entre os tâmeis e os cingaleses – resultado de um forte nacionalismo cingalês expresso em leis como a que transformou o cingalês na língua oficial do país. Para os patriotas cingaleses, a elevação da sua distinta cultura budista restaurou seu orgulho, que havia sido minado por séculos de dominação estrangeira. Mas, para a minoria tâmil, os anos pós-independência apenas pareciam uma competição para estabelecer qual lado tinha o direito de se autodeclarar o ocupante mais antigo do território do país.

A guerra se arrastou por 25 anos. A luta concentrou-se principalmente no norte tâmil e deixou cerca de 80 mil mortos, segundo estimativas da Organização das Nações Unidas (ONU). Durante o período do conflito, os dois lados ganharam e perderam territórios – mas os Tigres Tâmeis combateram a superioridade militar do governo com uma campanha de terror que massacrou aldeões cingaleses e muçulmanos. O conflito terminou em 2009, após uma violenta investida do governo contra os Tigres, que deixou milhares de civis tâmeis mortos.

O sonho de Eelam, financiado e apoiado por muitos membros da diáspora tâmil durante uma geração, está morto. Em seu lugar há uma paz intranquila.

Quando criança, eu sempre visitava o bangalô do meu avô em Jaffna, e cheguei a considerá-lo minha casa. Depois que ele morreu, minha mãe ficou com a casa – e estava pronta para retornar ao país assim que a guerra acabasse. Mas quando a guerra finalmente terminou, ela vendeu o bangalô.

Jaffna fica em uma península no extremo norte do Sri Lanka, e a única maneira de chegar lá vindo do exterior é voando até Colombo. Meu marido e eu contratamos um carro com um motorista cingalês, que estava curioso para conhecer Jaffna. No Sri Lanka, as identidades frequentemente são fluidas. Enquanto passeávamos de carro pelas ruas das cidades cingalesas do sul eu vi homens vestidos com sarongues xadrezes, exatamente como o meu pai.

A estrada faz um desvio repentino para o interior e adentrou a Vanni, uma vasta zona de floresta densa localizada ao sul de Jaffna, que testemunhou a violência da luta. Aqui, as feridas ainda estão abertas. As casas estão em ruínas ou salpicadas de buracos de bala. Uma imensa torre de água de concreto tombou durante os combates em Kilinochchi – que já foi a capital do pequeno estado dos Tigres –, e permanece tombada.

O exército está em toda parte – silencioso e atento. Após a paz estabelecida pelo presidente Mahinda Rajapaksa, em 2009, o norte foi coberto por uma densa rede militar. A cada trecho de alguns poucos quilômetros ao longo da estrada há um acampamento do exército. Em 2003, quando eu estava em Jaffna durante um breve cessar-fogo, lembro-me de soldados nervosos cercados por populares que falavam tâmil, uma língua que eles não conheciam. Agora, as tropas estão à vontade e os soldados andam de bicicleta entre os locais. Há apenas um posto de controle do exército no caminho até Jaffna. Os soldados verificam nossos passaportes e acenam para que continuemos nossa viagem.

Mais tarde, nós dirigimos até o endereço onde ficava a casa de meu avô, ao longo de uma das principais vias da região, que se estende por quilômetros e vai do centro da cidade até as aldeias costeiras. Eu finalmente identifico os familiares portões de ferro forjado. O bangalô é um retângulo de concreto, mas mesmo a partir da rua eu consigo ver que a casa está bem cuidada. Grande parte de Jaffna parece desarrumada hoje em dia, mas essa casa está reluzindo de nova. Eu fico de pé no jardim da frente, lembrando os anos em que a guerra tomou conta de tudo.

Ao passar uma temporada em Jaffna com meu avô, em 1982, o país estava tenso, mas a vida normal ainda parecia possível. Em seguida, o clima ficou pesado. Notei meus avós ficarem nervosos sempre que a polícia ou soldados patrulhavam a nossa rua. Meu avô começou a incentivar os filhos que ainda restavam a irem embora – e eles foram, um a um, para os Estados Unidos e a Austrália.

Quando os tigres paralisaram o Sri Lanka com atentados suicidas e uma força militar eficiente, eu já havia me mudado para a Inglaterra, onde minha família recebia cartas ocasionais contendo histórias sobre cortes de energia e escassez de medicamentos.

Os Tigres levantavam recursos com a comunidade tâmil mundial e por meio de investimentos em restaurantes e outros pequenos negócios no exterior. No último ano da guerra, estima-se que o número de tâmeis vivendo na Grã-Bretanha estava entre 110 mil e 150 mil. Os tâmeis da diáspora preferiam se concentrar nos sucessos dos rebeldes nas batalhas convencionais contra o exército do Sri Lanka, mas o LTTE também assassinou tâmeis moderados e civis. Meus avós deixaram o país na década de 1980 e começaram uma vida nova nos Estados Unidos, para onde quatro de seus filhos haviam migrado.

A guerra terminou em 2009, após o governo lançar um ataque decisivo para destruir os Tigres. De acordo com um relatório da ONU, que vazou para a imprensa em novembro de 2012, cerca de 30 mil civis tâmeis morreram durante essa fase final do conflito. Uma investigação da ONU acusou os militares de terem bombardeado indiscriminadamente civis e hospitais. O mesmo inquérito também acusou o LTTE de usar civis como escudos humanos.

Apesar do custo terrível em vidas humanas, a paz garantiu a Rajapaksa a aprovação da maioria cingalesa. Ele obteve uma vitória esmagadora nas eleições de 2010. Mas seu triunfo também ressaltou o quanto a ilha ainda permanece dividida. Apesar de o presidente gozar de uma imensa popularidade no sul do país, os partidos tâmeis aliados do governo têm se saído mal no norte e no leste do Sri Lanka.

A derrota do LTTE criou a oportunidade para o renascimento de uma política mais moderada. Mas é improvável que isso aconteça sem que o governo faça concessões. Apesar das garantias dadas aos governos estrangeiros e à ONU, o presidente não conseguiu realizar nenhuma transferência de poder para o norte e para o leste do país.

O governo diz que investiu pelo menos US$ 1,1 bilhão no norte do Sri Lanka desde o final da guerra. Falando em tâmil na Assembleia Geral da ONU antes do fim do conflito, Rajapaksa disse que os laços entre os dois povos cresceriam enquanto eles marchavam em direção a uma "liberdade mais rica". No entanto, o International Crisis Group, um respeitado grupo de especialistas, adverte que o desenvolvimento do norte é tendencioso, pois não abrange a população tâmil local. De acordo com um relatório divulgado pelo grupo em novembro de 2012, muitos negócios da região são administrados pelos militares ou por famílias cingalesas, e muitas das autoridades locais são originárias da maioria budista.

Eu conversei com um ex-membro do LTTE, recrutado sob a pior das circunstâncias: "os Tigres queriam que eu ou um de meus filhos entrássemos na luta. Por isso, eu fui". Ele diz que perdeu muitos parentes nos últimos dias da guerra, mortos pelas forças do governo. E acrescentou: "o desenvolvimento deles (do governo do Sri Lanka) é apenas para o seu próprio povo (os cingaleses). O dinheiro que os governos estrangeiros – como o governo do Japão – nos dão, nós não vemos".

Até mesmo lembrar os que foram mortos tornou-se um ato criminoso em Jaffna. Em novembro passado, o exército invadiu o campus da universidade e prendeu os estudantes por eles terem acendido lâmpadas para homenagear as vítimas da guerra. Pôsteres colocados perto do campus anunciam rotas de fuga: "Estude na Malásia", diz um; outro apresenta uma oferta de migração para o Canadá, a Nova Zelândia ou a Finlândia.

Durante muito tempo, a política no Sri Lanka tem sido um jogo de soma zero, no qual o grupo étnico vitorioso pode reivindicar a melhor fatia do bolo em termos de empregos públicos ou vagas nas universidades. Para ser realmente próspero e pacífico, o país precisa de uma solução política flexível o suficiente, capaz satisfazer sua mistura de etnias – com a concessão de autonomia às províncias de maioria tâmil em troca do reconhecimento da capital Colombo como sede soberana do governo.

No entanto, as brasas da guerra civil ainda estão vivas. Em Jaffna, o homem tâmil que nos guia pela cidade diz que a luta acabou e o LTTE foi exterminado. "Mas as pessoas ainda tocam as músicas da guerra", diz ele.


Texto de Meera Selva, para a Prospect, reproduzido no UOL. Tradução de Cláudia Gonçalves.

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