sábado, 5 de setembro de 2020

Paulo Francis aos 90

 Paulo Francis desembarcou do avião no Rio, vindo de uma viagem profissional a Nova York, na manhã de 14 de dezembro de 1968. Doze horas antes, os militares haviam baixado o Ato Institucional nº 5, invadido o jornal em que ele trabalhava, o Correio da Manhã, e prendido seus amigos. Francis passara a noite voando, sem saber de nada. Daí, ao chegar à escadinha, teria alçado a testa, contemplado o horizonte e perguntado: “E então, como se comportou o Brasil na minha ausência?” —e, ato contínuo, sido preso.

A história é boa, mas não aconteceu. Francis desembarcou normalmente no Galeão, foi para casa dormir e somente lá, horas depois, o prenderam. Mesmo assim, ainda circulou que ele teria sido levado de pijama pelos homens —o que tinha sua graça, sabendo-se que, em toda a sua vida, nunca se deixaria ver de pijama por ninguém. Mas estas eram apenas algumas das situações desmoralizantes que nós, seus amigos, em qualquer situação, inventávamos e espalhávamos a seu respeito —e que ele recebia com humor, no fundo gostando de ser um personagem.

Francis teria completado 90 anos nesta quarta-feira (2). Quem o conheceu e nunca se conformou com sua morte, em 1997, aos 66 anos, lamenta que ele não tenha vivido para ver Lula, Dilma, Temer e Bolsonaro, ou Bush, Obama e Trump, como presidentes. Não, não é previsível o que ele diria deles. Fosse o que fosse, seria hilariante para quem não divide o mundo mecanicamente em esquerda e direita.

Ao pensar nesses 90 anos, mal consigo acreditar que fui ao seu aniversário de 38 anos, em 1968. Seu apartamento, na rua Alberto de Campos, em Ipanema, estava superlotado de gente de todas as cores políticas, de luminares do antigo Partidão a grã-finas perfumadas. Eu tinha 20 anos e era seu colaborador no Correio e na revista Diners.

Na trilha sonora, acredite, LPs de Renata Tebaldi, Carmen McRae e Dircinha Baptista.


Texto de Ruy Castro, na Folha de São Paulo

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