terça-feira, 29 de setembro de 2020

Meninas aprendem a se deixarem abusar

 O profundo mal-estar e estupefação causados pelos crimes do pretenso médium João de Deus passam, entre outras coisas, pela ambiguidade das vítimas. Tema que retorna cada vez que uma mulher —ou criança— é abusada sexualmente e não tem a reação esperada pelo leigo.

Os estupros —cuja denúncia tardia o levaram à prisão— são a ponta do iceberg de uma vida cheia de suspeitas de assassinatos, torturas, formação de quadrilha e extorsão.

No relato das vítimas gravado na série “Em Nome de Deus” (Globoplay), cada uma, à sua maneira, se questiona —e culpabiliza— por não ter conseguido fugir, denunciar ou sequer se lembrar do ocorrido durante anos.

Para Freud, o trauma é a combinação entre a intensidade do vivido e a impossibilidade de elaborá-lo. Trata-se menos do evento em si e mais das condições para que ele possa ser inteligível, narrável, reconhecível, socialmente compartilhável. O trauma acontece diante do total despreparo da vítima, que é pega de surpresa e congela sem ter condição de entender que o que ela está vivendo é diferente do que está imaginando. Prevalece o apagamento da memória, a sensação de irrealidade e dúvida daquilo que no fundo se sabe, mas não encontra meios de ser admitido para si mesmo.

Nesse sentido, o testemunho de Débora Kalume, atriz e viúva do diretor Fábio Barreto, é exemplar. A última esperança na cura de Fábio —que se encontrava em coma—, o sofrimento atroz e a fé inabalável no criminoso a fizeram duvidar de seu próprio julgamento. Ela sai da consulta com o curandeiro sem saber o que de fato aconteceu, embora a descrição do estupro seja inequívoca. O recalcamento da cena faz parte do trauma.

À dúvida e à vergonha vêm se somar o medo —algumas vítimas teriam sido mortas ou sofreram atentados e intimidações, diz o documentário— e a completa impunidade do agressor durante décadas.

Meninas são educadas para serem bonitas, compreensivas, amáveis e cuidadoras. Sabe-se que estatisticamente os elogios às meninas se concentram em sua aparência e amabilidade, ficando a inteligência e a coragem reservadas aos meninos. Elas servem aos outros sob pretexto de que são naturalmente cuidadoras, como se o cuidar não fosse fruto de aprendizado.

O paternalismo que visa proteger as mulheres se baseia em subserviência e falta de autonomia delas diante dos seus protetores —e algozes—, que afirmam saber o que é melhor para elas. O modelo “recatada e do lar” passa longe da ideia de assertividade feminina, na qual o sujeito reconhece seu desejo, identifica o suposto desejo do outro, mas não se deixa alienar por ele.

Se uma mulher quiser romper com esse estereótipo, vai se deparar primeiro com uma alternativa de masculinidade beligerante que esconde sua própria fragilidade com o uso da violência. Não se trata, portanto, de educar filhos ao gosto da violência incutida na criação dos meninos, equívoco frequente de alguns discursos feministas. Mas de permitir que meninos e meninas digam não à influência maciça, à coerção e à sedução dos outros, ou seja, que passem da posição de objetos à de sujeitos.

Vir a público denunciar o estupro implica expor uma cena íntima e vexatória, ter sua integridade física ameaçada e ser mal interpretada moralmente. Na maioria dos casos, implica admitir ter sido capturada no desejo do outro a ponto de duvidar do próprio.

Mas não é para essa subserviência mesmo que temos criado as meninas?

Para quem duvida da conivência social que ampara essa lógica, neste exato momento João de Deus cumpre prisão domiciliar em função da pandemia.

Nós também, lembra uma das vítimas.


Texto de Vera Iaconelli, na Folha de São Paulo

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