quinta-feira, 20 de março de 2014

A Grã-Bretanha trata jornalistas como terroristas


A liberdade de expressão e a liberdade de imprensa estão sendo atacadas na Grã-Bretanha. Não posso voltar à Inglaterra, meu país, devido ao meu trabalho jornalístico com o denunciante da NSA, Edward Snowden, no WikiLeaks. Há coisas que eu sinto que nem posso escrever. Por exemplo, se eu dissesse que teria esperança de que meu trabalho no WikiLeaks mudasse o comportamento do governo, esse trabalho jornalístico seria considerado um crime, de acordo com a Lei de Terrorismo de 2000.
A lei define terrorismo como uma ação ou uma ameaça “projetada para influenciar o governo”, que “é realizada com o objetivo de promover uma causa política, religiosa, racial ou ideológica” e que representaria um “sério risco” para a saúde ou segurança de uma parcela do público. As autoridades governamentais do Reino Unido afirmam constantemente que esse risco está presente com a divulgação de qualquer documento “confidencial”.
Além disso, a lei diz que “o governo” significa o governo de qualquer país – inclusive dos Estados Unidos. A Grã-Bretanha usou essa lei para abrir uma investigação de terrorismo em relação a Snowden e aos jornalistas que trabalhavam com ele e como pretexto para entrar nos escritórios do Guardian e exigir a destruição de seus discos rígidos relacionados a Snowden. A Grã-Bretanha está se transformando num país que não sabe a diferença entre seus terroristas e seus jornalistas.
Definição bizarra de terrorismo
O recente julgamento do caso de David Miranda é uma prova disso. Miranda ajudava o jornalista Glenn Greenwald e viajava, no verão passado, com documentos do jornalista. Quando seu avião fez escala no aeroporto de Heathrow, ele foi detido com base no item 7 da Lei de Terrorismo. O item 7 significa que uma pessoa pode ser detida por até nove horas num ponto de entrada no Reino Unido e não tem direito ao silêncio. Obriga a pessoa a responder a perguntas e entregar documentos que estejam consigo, e, portanto, David Miranda foi obrigado a entregar seus documentos de Snowden. Posteriormente, Miranda entrou com um processo contra o governo do Reino Unido sobre a legalidade de sua detenção, para mostrar como essa lei representa uma transgressão à capacidade de um jornalista trabalhar livremente. De forma ultrajante, o tribunal encontrou desculpas políticas para ignorar as bem definidas proteções à liberdade de expressão que constam da Convenção Europeia de Direitos Humanos.
Se a Grã-Bretanha for investigar jornalistas como terroristas, tomar e destruir nossos documentos, obrigar-nos a entregar senhas e responder a perguntas, como poderemos garantir proteção às nossas fontes? O precedente já existe; nenhum jornalista pode ter certeza de que se sair, entrar ou fizer escala no Reino Unido isso não lhe acontecerá. Meus advogados aconselharam-me a não voltar ao meu país.
A assessora jurídica de Edward Snowden, Jesselyn Radack, norte-americana, foi questionada sobre Julian Assange e seu cliente quando entrou recentemente no Reino Unido. Sou bastante ligada aos dois: trabalho para um deles e salvei e acompanhei o outro por quatro meses. Além disso, se eu tentasse entrar no país e o item 7 fosse ativado para me parar, eu não teria como responder a essas perguntas nem como ceder, uma vez que isso representaria um risco para o trabalho jornalístico do WikiLeaks, para o nosso pessoal e para as nossas fontes. Como, de acordo com essa lei, eu não teria direito ao silêncio, para o governo eu estaria cometendo um crime. Uma condenação por “terrorismo” teria sérias consequências no exterior com os movimentos internacionais pela liberdade.
O item 7 da lei não trata de pegar terroristas, nem em seus próprios termos. O julgamento de David Miranda afirma que, neste caso, ele “constituiu uma interferência indireta à liberdade de imprensa” e esta é reconhecidamente “capaz, dependendo dos fatos, de ser desdobrada de forma a interferir com a liberdade jornalística”. As autoridades podem deter uma pessoa, não por suspeitarem que ela esteja envolvida com terrorismo, e sim para ver “se alguém parece” – mesmo de maneira indireta – facilitar a definição bizarra de terrorismo usada nesta lei.
Direitos e liberdades
O juiz Ouseley, que também presidiu o caso de extradição de Julian Assange, declarou em seu julgamento que uma autoridade pode agir por “não mais que uma suspeita ou intuição”. Portanto, agora foi determinado por nossos tribunais que é aceitável interferir com a liberdade de imprensa com base numa suspeita – tudo em nome da “segurança nacional”. Atualmente, ao invés de significar “a garantia de estabilidade de uma nação para seu povo”, a segurança nacional é um slogan usado por governos para justificar suas próprias ilegalidades, sejam elas invadir outro país ou espionar seus próprios cidadãos. Esta lei – e isso agora é cristalinamente claro – está sendo usada, de forma consciente e estratégica, para ameaçar jornalistas. Tornou-se uma ferramenta para garantir a escuridão atrás da qual nosso governo pode construir um Big Brother do século 21, totalmente novo.
Esta erosão dos direitos humanos mais elementares é uma ladeira escorregadia. Se o governo conseguir se dar bem espionando-nos – não apenas com a cumplicidade, mas com a exigência dos Estados Unidos –, então, a que tipo de sistema de controle e equilíbrio ainda podemos recorrer? Poucos de nossos parlamentares estão fazendo alguma coisa no sentido de agir contra esta restrição abusiva de nossa liberdade de imprensa. A deputada (PV) Caroline Lucas entrou com uma moção no dia 29 de janeiro, mas até agora somente 18 outros parlamentares a assinaram.
Desde meu refúgio em Berlim, isso cheira mais a adotar o passado da Alemanha do que seu futuro. Tenho pensado sobre até onde a história da Grã-Bretanha teria sido mais pobre se seus governos dispusessem de um instrumento abusivo. O que teria acontecido a todas as campanhas públicas realizadas numa tentativa de “influenciar o governo”? Vejo as mulheres que lutavam pelo direito ao voto sendo ameaçadas, vejo os manifestantes da marcha de Jarrow sendo rotulados como terroristas, vejo Dickens sendo encarcerado na prisão de Newgate.
Em sua disposição de atropelar nossas tradições sem qualquer consideração, as autoridades britânicas e as agências do Estado estão agarradas a um extremismo que é tão perigoso para a vida pública britânica quanto a ameaça (real ou imaginária) de terrorismo. Como declarou o juiz Ouseley, o jornalismo não possui um “status constitucional” no Reino Unido. Mas não pode haver dúvida de que este país precisa de um plano de liberdade de expressão para os próximos anos. O povo da Grã-Bretanha deveria lutar para mostrar ao governo que iremos preservar nossos direitos e nossas liberdades, sejam quais forem as medidas repressivas e ameaças que lancem contra nós.
Texto da britânica Sarah Harrison, para o The Guardian, reproduzido no Observatório da Imprensa

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