sábado, 10 de agosto de 2013

Na Índia, o desencantamento dos ex-rebeldes caxemires

O fuzil-metralhadora fica pregado na parede de cimento nu. Ele é de plástico. Arif Hussein Shah fala com esse brinquedo de criança nas costas, uma referência à guerra que conduziu em outros tempos. Esse caxemire de 30 e poucos anos foi um insurgente separatista, que se arrependeu e entregou as armas. No dia 18 de julho ele nos recebeu em uma casa simples de seu vilarejo de Uri, escondido no pé da montanha. Através da janela é possível ver os maciços arborizados do Himalaia. A fronteira com o Paquistão fica a somente uma dezena de quilômetros.
Arif Hussein fala sobre seu sentimento de impotência, sua preocupação e sua própria hesitação: "Estou desanimado. Tenho medo que a luta armada recomece na Caxemira caso a Índia não mantenha suas promessas. Se o Paquistão nos fizer uma oferta, talvez voltemos para lá". É uma confissão terrível vinda desse ex-rebelde, cuja volta ao país deveria representar um sucesso de Nova Déli, uma vitória das políticas de pacificação sobre as ideias de separatismo que inflamam esse Estado do Jammu-e-Caxemira, o único Estado de maioria muçulmana da federação indiana.
A Índia e o Paquistão disputam essa região himalaia desde o nascimento, em 1947, sobre os escombros do império britânico das Índias. Das quatro guerras entre os dois países, três tiveram como questão a Caxemira (1947, 1965, 1999). As escaramuças sobre a "linha de controle" (Line of Control, LoC), a fronteira de facto que separa a Caxemira indiana da Caxemira paquistanesa, não são raras, como mostraram, mais uma vez, os incidentes do dia 6 de agosto durante os quais cinco soldados indianos foram mortos, segundo Nova Déli, por tiros paquistaneses, algo que Islamabad negou veementemente.

"Somos perseguidos"

Arif Hussein Shah conhece essa fronteira por tê-la atravessado clandestinamente durante os anos de chumbo do conflito caxemire. No final dos anos 1980, Jammu-e-Caxemira esteve em turbulência. Fruto de uma revolta autóctone contra a "ocupação indiana", a insurreição –apoiada ativamente pelo Paquistão – fez cerca de 50 mil mortos ao longo da década seguinte.
Arif Hussein Shah era um menino em 1990 quando entrou no Paquistão, primeiramente em um campo de refugiados, e mais tarde em um campo de treinamento onde os serviços secretos do exército paquistanês formavam rebeldes caxemires na guerrilha anti-indiana. Arif recebeu ali um treinamento em rádio. "Eu transmitia as ordens de nossos chefes aos combatentes infiltrados na Caxemira indiana", ele conta.
Em 2003, ele atravessou a linha de controle para visitar sua família em Uri. Visto pelo exército indiano, ele foi preso mas conseguiu escapar e voltou para o Paquistão. Todavia, dessa vez a recepção foi menos calorosa do que durante sua primeira vinda. Ele era suspeito de ser um espião indiano. Ele passou um ano na prisão perto de Islamabad, onde foi torturado pelos serviços secretos paquistaneses. O militante da "Caxemira livre" foi se desiludindo cada vez mais, arrasado por uma mecânica infernal que o sobrepujava.
Além disso, quando em 2006 ele ouviu falar na política de conciliação da Índia, uma oferta de "reabilitação" proposta a ex-rebeldes, ele agarrou a oportunidade. Ele chegou a convencer outros cinquenta membros de seu grupo – chamado Al-Barak – a voltar para a Caxemira indiana e levar uma vida normal.
Mais uma vez, a desilusão o esperava. As promessas oficiais de apoio socioeconômico para apressar a reinserção dos ex-rebeldes em uma Caxemira pacificada se revelaram vazias. Arif Hussei Shah ainda não recebeu uma carteira de identidade. Por não ter esse documento, ele não pode ter um emprego nem contrair um empréstimo. Seus filhos não podem frequentar a escola. E ele deve "bater ponto" no posto policial do vilarejo a cada quinze dias. "No lugar da ajuda prometida, nós somos perseguidos", ele lamenta.

Famílias sem documentos

A vida se tornou tão difícil que ele acabou se arrependendo de ter deixado o Paquistão: "Pelo menos lá eu tinha um emprego". Vice-presidente de uma organização de ex-rebeldes – que conta com 1.250 membros - , ele se esgotou nos processos burocráticos para conseguir a prometida "reabilitação".
O quebra-cabeça mais doloroso desses ex-rebeldes é o status de suas esposas – em geral paquistanesas – e de seus filhos (nascidos no Paquistão), enfim, famílias sem documentos regulamentares. "As pessoas estão desesperadas", afirma Arif Hussein Shah. "Enquanto não conseguirem levar uma vida normal, a situação pode se tornar muito perigosa na Caxemira. Esses ex-rebeldes têm experiência militar. Se o Paquistão tentasse instrumentalizá-los, não seria difícil criar distúrbios."
O caxemire de repente se cala, com o olhar sonhador. Sentado de pernas cruzadas ao seu lado, Imtiaz Ahmed Lone começa a falar. Ele também é um ex-rebelde, com a diferença de que era mais político do que militar. Por muito tempo trabalhou como representante da Frente de Libertação do Jammu-e-Caxemira em Islamabad, distribuindo seus panfletos separatistas junto a círculos diplomáticos da capital paquistanesa.
Depois de voltar ao país em 2008, ele enfrentou todas as dificuldades vividas pelos ex-rebeldes. A exemplo de seu amigo Arif, ele está preocupado com o futuro. "Os caxemires sofreram muito com anos de violência e a maioria não quer uma volta da luta armada", ele afirma. "Mas se não cicatrizarem as feridas dos ex-rebeldes, é grande o risco de levá-los a uma nova radicalização."

Reportagem de Fréderic Bobin para o Le Monde, reproduzido no UOL

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