segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Carrascos de massacre recontam mortes até em forma de musical

Carrascos de massacre recontam mortes até em forma de musical
Para diretor, recriação ficcional funciona como mecanismo de 'autoengano' para assassinos
Tema de filme chegou a Oppenheimer de forma casual, quando ele trabalhava com camponeses no país
JOÃO CARLOS MAGALHÃESDE BRASÍLIA

"The Act of Killing" (o ato de matar), documentário lançado no ano passado, tornou-se queridinho de críticos e cineastas. Fruto de uma década de trabalho de Joshua Oppenheimer, o filme --que será exibido no mês que vem no Festival do Rio-- nasceu quase por acidente.
No início dos anos 2000, Oppenheimer, recém-formado em cinema na Universidade Harvard, aceitou o convite de um sindicato internacional de trabalhadores rurais para documentar a tentativa de lavradores indonésios de criar uma associação.
Ao chegar ao país asiático, do qual pouco conhecia além da fama das praias paradisíacas e da emergência financeira, o americano, hoje com 38 anos, conheceu uma sociedade lastreada por um dos maiores e menos conhecidos morticínios do século 20. E assustou-se ao ver que os carrascos eram heróis nacionais.
"Foi como se eu chegasse à Alemanha 40 anos depois do Holocausto e descobrisse que os nazistas ainda estavam no poder", afirmou à Folha, referindo-se aos herdeiros políticos de Suharto (1921-1968), feito ditador no país após o movimento político iniciado em 1965, com apoio dos EUA, num globo então dividido pela Guerra Fria.
O golpe de Estado levou a um massacre que, a depender de quem conta, atingiu entre 500 mil e 2,5 milhões de "comunistas" --termo que geralmente não refletia a orientação ideológica do morto.

PERIGO

Durante o trabalho com os camponeses (que levou ao filme "The Globalisation Tapes"), era comum o Exército abordá-lo. Os próprios lavradores então o orientaram: "Talvez seja muito perigoso nos filmar. Por que não procura os autores das mortes?".
Foi o que fez. Passou a registrar todo e qualquer assassino que encontrava. E eles, a maior parte integrantes de grupos paramilitares ainda hoje poderosos e atuantes, não apenas confessavam o que fizeram mas o faziam com orgulho e alegria.
Queriam levar o cineasta até aos porões dos massacres, apresentá-lo a colegas carrascos e, em especial, demonstrar em detalhes como as mortes e torturas ocorreram.
Oppenheimer propôs, então, uma técnica narrativa heterodoxa: que os próprios carrascos dirigissem e reencenassem, para ele, suas atrocidades em cenas de ficção, no gênero que escolhessem. Eles toparam e fizeram até mesmo cenas de musical.
O personagem principal é Anwar Congo, um cadavérico e manso avô, fã de filmes de máfia, que se acha parecido com Sidney Poitier e é famoso por ter assassinado mil "comunistas" com uma técnica de estrangulamento inventada por ele próprio.
Seu companheiro preferencial é Herman Koto, um gângster obeso que se veste de mulher em quase todas as histórias que representam.
"The Act of Killing" é uma espécie de "making of" desses "filmes B", feitos unicamente para serem documentados pelo norte-americano e cujo desenrolar parece reinventar a memória e o discurso de Anwar sobre os fatos.
Mas essas atuações improvisadas são tão realistas, e a maneira com que os carrascos relembram o que fizeram tão delirante, que se torna impossível dizer onde começa e termina a fantasia, mesmo no final supostamente catártico.
Para o diretor, o aparente orgulho dos assassinos, que ele chama de "celebração do genocídio", não prova sua alegada monstruosidade --e sim o oposto. Por entenderem a gravidade do que fizeram, inventam um mecanismo de autoengano radical, diz. "É um paradoxo trágico."
Além da atenção da crítica e de prêmios em festivais como o de Berlim, o filme conquistou duas lendas do cinema de não ficção.
O alemão Werner Herzog ("Não vi na última década um filme tão poderoso, surreal e assustador") e o americano Errol Morris" ("Não se parece a nada que já vi") tornaram-se produtores-executivos do longa após assistirem ao trabalho de Oppenheimer.
Na Indonésia, a obra nunca estreou no circuito normal, e a equipe de filmagem local continua anônima, por motivos de segurança. Mas o longa teve dezenas de disputadas exibições clandestinas e reacendeu o debate sobre o que ocorreu no regime --e como seus efeitos persistem.
Segundo Oppenheimer, a obra não é sobre o passado, e sim sobre "o agora".
Ele conta que militares indonésios disseram recentemente que "é preciso estar prontos para exterminar novos comunistas'". "Questionados sobre quem eram esses, eles disseram: Pessoas que estão se juntando para ver certos filmes'."

DISTORÇÃO

A Embaixada da Indonésia no Brasil afirma que o filme sugere um visão distorcida sobre a questão dos direitos humanos no país. "A Indonésia de hoje não é representada pelo que está no filme", diz Sudaryomo Hartosudarmo, embaixador do país.
Ele também nota que o formato do filme pode dar a "impressão errada" de que se trata de um documentário, quando sua sinopse afirma que ele é baseado nas "histórias, imaginação e memórias" dos torturadores. E diz que, embora o governo indonésio não tenha uma posição oficial, a embaixada respeita a expressão artística de todos, inclusive a do cineasta.

Reprodução da Folha de São Paulo

A folha oferece também o trailer do tal filme.

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