terça-feira, 2 de abril de 2013

Na Palestina, dignidade e violência


O escritor sueco Henning Mankell conta sobre uma experiência em Moçambique durante os horrores de sua guerra civil 25 anos atrás, quando ele viu um homem jovem caminhando na direção dele com roupas em farrapos.
"Eu notei algo que nunca esquecerei enquanto eu viver", disse Mankell. "Eu olhei para os pés dele. Ele não tinha calçados. Em vez disso, ele tinha sapatos pintados em seus pés. Ele usava as cores da terra e das raízes para substituir seus calçados. Ele inventou um modo de manter sua dignidade."
Cenas como essa evocarão memórias comoventes entre aqueles que testemunharam a crueldade e a degradação, que estão por toda parte. Um caso notável, apesar de apenas um entre muitos, é Gaza, que pude visitar pela primeira vez em outubro passado.
Lá a violência é enfrentada pela resistência firme dos "samidin" –aqueles que suportam, usando o termo evocativo de Raja Shehadeh em "The Third Way", seu livro de memórias dos palestinos sob a ocupação, 30 anos atrás.
Ao voltar para casa, fui recebido pelas notícias de um ataque israelense contra Gaza em novembro, apoiado pelos Estados Unidos e tolerado educadamente pela Europa como de costume.
Israel não é o único adversário de Gaza. A fronteira sul de Gaza permanece em grande parte sob controle da temida polícia secreta do Egito, a Mukhabarat, que relatos críveis associam estreitamente à CIA e ao Mossad israelense.
No mês passado, um jovem jornalista de Gaza me enviou um artigo descrevendo o mais recente ataque do governo egípcio à população de Gaza.
Uma rede de túneis para o Egito é uma linha vital para os moradores de Gaza aprisionados sob o duro sítio e os ataques constantes. Agora o governo egípcio concebeu uma nova forma de bloquear os túneis: inundá-los com esgoto.
Enquanto isso, o grupo de direitos humanos israelense B'Tselem relata a nova forma usada pelo exército israelense para combater os protestos semanais não violentos contra o Muro da Separação ilegal de Israel –na verdade, o Muro da Anexação.
Os samidin foram hábeis em lidar com o gás lacrimogêneo, de modo que o exército partiu para uma escalada, borrifando manifestantes e casas com um jato de um líquido tão nocivo quanto esgoto.
Esses ataques fornecem mais evidência de que grandes mentes pensam igual, combinando repressão criminosa com humilhação.
A tragédia de Gaza remonta a 1948, quando centenas de milhares de palestinos fugiram em horror ou foram expulsos à força para Gaza pelas forças conquistadoras israelenses.
O primeiro-ministro David Ben-Gurion disse que "só resta uma função aos árabes da terra de Israel –fugir".
Vale notar que atualmente o apoio mais forte a Israel na arena internacional vem dos Estados Unidos, Canadá e Austrália, a chamada Anglosfera –sociedades de colonos/coloniais baseadas no extermínio ou expulsão das populações indígenas em prol de uma raça superior, e onde esse comportamento é considerado natural e digno de louvor.
Por décadas, Gaza foi um mostruário de toda sorte de violência. O recorde inclui atrocidades cuidadosamente planejadas como a Operação Chumbo Fundido em 2008-2009 –"infanticídio", como foi chamado pelos médicos noruegueses Mads Gilbert e Erik Fosse, que trabalhavam no Hospital Al Shifa de Gaza com seus colegas palestinos e noruegueses durante o ataque criminoso. A palavra é adequada, considerando as centenas de crianças massacradas.
A violência varia de todo tipo de crueldade concebida pelas faculdades mentais superiores dos seres humanos até a dor do exílio.
A dor é particularmente aguda em Gaza, onde as pessoas mais velhas ainda podem olhar para as casas das quais foram expulsas do outro lado da fronteira –ou poderiam, caso pudessem se aproximar da fronteira sem serem mortas.
Uma forma de punição tem sido fechar uma porção maior do lado de Gaza da fronteira, a transformando em uma zona tampão, incluindo metade das terras aráveis de Gaza, segundo Sara Roy de Harvard, uma importante estudiosa sobre Gaza.
Apesar de ser um mostruário da capacidade humana de violência, Gaza também é um exemplo inspirador da exigência por dignidade.
Ghada Ageel, uma mulher jovem que escapou de Gaza para o Canadá, escreve sobre sua avó refugiada de 87 anos, ainda presa na prisão de Gaza. Antes de sua avó ser expulsa de um vilarejo atualmente destruído", ela tinha uma casa, fazendas e terras, e ela desfrutava de honra, dignidade e esperança.
Incrivelmente, como os palestinos em geral, a idosa não perdeu a esperança.
"Quando vi minha avó em novembro de 2012, ela estava incomumente feliz", escreveu Ageel. "Surpresa com seu ânimo, eu pedi uma explicação. Ela me olhou nos olhos e, para minha surpresa, disse que não mais se preocupava" com seu vilarejo natal e com a vida de dignidade que ela perdeu, para ela irreversivelmente.
O vilarejo, a avó disse para Ageel, "está em seu coração, e eu também sei que você não está sozinha em sua jornada. Não se sinta desencorajada. Nós estamos chegando lá".
A busca pela dignidade é entendida instintivamente por aqueles que seguram as clavas, e que reconhecem que fora a violência, a melhor forma de minar a dignidade é por meio da humilhação. Essa é a segunda natureza nas prisões.
A prática normal nos presídios israelenses está novamente sob investigação. Em fevereiro, Arafat Jaradat, um frentista de posto de gasolina de 30 anos, morreu sob custódia israelense. As circunstâncias poderiam provocar outro levante.
Jaradat foi preso em sua casa à meia-noite (um horário apropriado para intimidar sua família) e acusado de ter atirado pedras e um coquetel Molotov alguns meses antes, durante o ataque de Israel contra Gaza em novembro.
Com saúde quando foi preso, Jaradat foi visto pela última vez vivo no tribunal com seu advogado, que o descreveu "sofrendo dores, assustado, confuso e encolhido".
O tribunal decidiu que ele permanecesse mais 12 dias em detenção. Jaradat foi encontrado morto em sua cela.
A jornalista Amira Hass escreveu que "os palestinos não precisam de uma investigação israelense. Para eles, a morte de Jaradat é muito maior do que a tragédia sofrida por ele e sua família. Segundo a experiência deles, a morte de Jaradat é prova de que o sistema israelense faz uso rotineiro de tortura. Segundo a experiência deles, a meta da tortura não é apenas condenar alguém, mas principalmente dissuadir e subjugar uma população inteira".
Os meios são humilhação, degradação e terror –características familiares da repressão em casa e no exterior.
A necessidade de humilhar aqueles que erguem suas cabeças é um elemento inerradicável da mentalidade imperial.
No caso de Israel-Palestina, há muito há um consenso internacional quase unânime a respeito de um acordo diplomático, bloqueado pelos Estados Unidos por 35 anos, com aceitação tácita europeia.
O menosprezo pelas vítimas sem valor faz parte da barreira para se chegar a um acordo com pelo menos uma pequena dose de justiça e respeito pela dignidade humana e direitos. Não está além da imaginação que a barreira possa ser superada por trabalho dedicado, como ocorreu em outros lugares.
A menos que os poderosos sejam capazes de aprender a respeitar a dignidade das vítimas, as barreiras intransponíveis permanecerão, e o mundo estará condenado à violência, crueldade e ao sofrimento amargo.
Texto de Noam Chomsky, no UOL. Tradutor: George El Khouri Andolfato

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