quinta-feira, 25 de abril de 2013

África do Sul precisa se preparar para a morte de Mandela


As notícias que temos recebido sobre Nelson Mandela indicam que seus problemas de pulmão voltaram. Não fui visitá-lo --eu não acredito que a família gostaria de ser incomodada neste momento--, mas enviei uma mensagem de texto para a mulher de Mandela, Graça.
Minha preocupação é que não estamos nos preparando, como país, para o momento em que o inevitável acontecerá. Mandela tem 94 anos, e Deus tem sido muito bom em tê-lo poupado todos esses anos. Mas o trauma de sua morte vai ser muito intensificado se nós não começarmos a nos preparar para o fato que naturalmente vai acontecer em algum momento.
Atualmente, as pessoas que talvez desejem criticar o atual sistema político podem se sentir inibidas em fazê-lo. As pessoas que poderiam considerar votar em partidos diferentes se sentem constrangidas pela sensação de que isso seria um tapa na cara de Mandela. Essas questões vão intensificar o que já seria, de qualquer modo, uma experiência muito traumática.
Nós tivemos uma experiência semelhante antes, quando Chris Hani, líder do Partido Comunista Sul-Africano, foi assassinado, em 1993. Na época, nosso país quase pegou fogo. Felizmente, isso não aconteceu -- em parte, porque o governo do Apartheid foi sensível o suficiente para perceber que teria que pedir a Mandela, que ainda não era presidente, para que falasse com os cidadãos e fizesse um apelo para que todos ficassem calmos. Desta vez é muito difícil saber a quem o povo poderia recorrer e quem teria a mesma autoridade para acalmar os cidadãos.
Nós deveríamos estar nos preparando ao construirmos um memorial para Mandela --mas não um memorial físico. O melhor memorial para Mandela seria uma democracia plenamente instalada e funcionando, uma democracia na qual cada pessoa da África do Sul teria a certeza de que poderia fazer a diferença.
A África do Sul tem potencial para ser um dos países mais vibrantes do mundo. É muito doloroso para as pessoas mais velhas, como eu, ver o nosso país se deteriorando e perdendo lentamente o que imaginávamos que nos pertencia --a superioridade moral.
Ninguém em seu juízo perfeito teria imaginado que iríamos produzir um paraíso do dia para a noite --mas nós imaginamos que já teríamos feito progressos muito consideráveis para reduzir a lacuna entre os pobres e os ricos. Mas hoje a África do Sul é a sociedade mais desigual do mundo.
Durante a nossa luta, acredito eu, éramos muito especiais. Não havia praticamente ninguém dizendo que estava engajado na luta para obter algum tipo de autoenaltecimento. Nós imaginávamos que esse idealismo e esse altruísmo seriam transferidos automaticamente para o período pós-Apartheid.
Sabemos agora que o pecado original não tem absolutamente nenhuma relação com a discriminação racial. Estamos todos contaminados por esse pecado original, e muitas pessoas que alguns anos atrás se mostravam prontas para sacrificar suas vidas, agora estão perguntando: "O que vou ganhar com isso?" Podemos mencionar vários casos de corrupção, de impunidade. Mas fizemos muitas coisas das quais devemos nos orgulhar. Nós fizemos um trabalho maravilhoso ao sediarmos a Copa do Mundo. Esse evento mostrou ao nosso país o que temos em nós e o que podemos nos tornar.
Eu não sou membro de carteirinha de nenhum partido político. Eu tenho, ao longo dos anos, votado no CNA (Congresso Nacional Africano), mas infelizmente não poderei votar mais neles depois do que tem ocorrido. Nós realmente precisamos de uma mudança. O CNA foi uma liderança muito boa durante nossos dias de luta. O partido constituía uma boa unidade de luta pela liberdade. Mas agora não me parece que uma unidade de luta pela liberdade possa facilmente fazer a transição e se transformar em um partido político.
E, infelizmente, nós temos um ponto fraco em nossa constituição. Foi importante para a nossa transição contarmos com uma representação proporcional, na qual as pessoas votavam não em um candidato específico, mas em um partido. E esse sistema ainda está em vigor aqui na África do Sul. O partido que vence decide quem serão seus representantes e, por isso, todo mundo quer entrar na lista do partido. Ninguém quer colocar em risco suas chances de ser o que deveria ser como membro do parlamento --alguém que garanta que o executivo prestará contas ao legislativo. A primeira coisa que o próximo parlamento deve fazer é mudar o nosso sistema eleitoral para que as pessoas elejam seus representantes com base em um distrito eleitoral, onde cada um votará em um indivíduo que será responsável perante o eleitorado.
A China tem trazido uma série de benefícios para a África, com os investimentos que realizou e a construção de uma infraestrutura no continente --mas esses benefícios tiveram um preço. Na África do Sul, muitas pessoas que trabalham na indústria têxtil perderam seus empregos devido ao fato de o país ter sido inundado por produtos chineses baratos. Mas, para mim, o que é ainda mais angustiante é como o nosso país parece estar se curvando a Pequim.
O exemplo mais gritante dessa reverência é o que eles fizeram com o Dalai Lama quando o governo sul-africano ficou enrolando para conceder seu visto de modo que ele não pudesse vir à minha festa de aniversário. (Em 2011, o Dalai Lama não conseguiu participar da festa do 80º aniversário de Desmond Tutu, pois o governo sul-africano demorou muito para processar seu pedido de visto. O CNA disse que o Dalai Lama não foi impedido de entrar na África do Sul, mas acredita-se que o partido foi pressionado por Pequim).
Decisões deliberadas por parte de políticos têm causado a terrível situação vigente em nosso vizinho, o Zimbábue. Apenas alguns anos atrás, o Zimbábue era um país próspero e dono de uma democracia vibrante. Obviamente, desejamos desesperadamente que o Zimbábue possa recuperar a glória daqueles dias. Parece uma loucura tão absoluta as coisas que eles fizeram por lá --ao destruírem um setor agrícola muito rentável, por exemplo, ao entregarem as fazendas a pessoas que realmente não eram capacitadas para administrá-las e ao deixarem os equipamentos agrícolas se estragarem. Mas as pessoas são muito resistentes e eu espero sinceramente que, um dia, esse país possa se recuperar para desempenhar o papel significativo que estava desempenhando como um próspero país exportador de alimentos.
A África do Sul tem muitas pessoas talentosas --e essas pessoas poderiam liderar o nosso país. Mas, no momento, uma grande dose da lealdade política se baseia no fato de que essas são as pessoas que lutaram pela liberdade de que hoje desfrutamos. Emocionalmente, precisamos de uma virada real para fazermos essas pessoas entenderem que, quando votamos em um partido político estamos votando em suas políticas e indicando que essas são as coisas que queremos que aconteçam. Não podemos votar nos baseando nas ligações emocionais que tivemos com as pessoas que se esforçaram pela nossa liberdade.

Texto de Desmond Tutu, para a Prospect, reproduzido no UOL. Tradução de Cláudia Gonçalves.

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