segunda-feira, 1 de abril de 2013

Culpadas por estupros, mulheres do Egito decidem erguer a voz


O grande número de mulheres abusadas sexualmente e estupradas numa única praça pública tornou-se grande demais para ser ignorado. Islamistas conservadores da nova elite política do Egito ficaram indignados --com as mulheres.
"Às vezes", diz Adel Abdel Maqsoud Afifi, general da polícia, legislador e islamista ultraconservador, "uma garota contribui com 100% de seu próprio estupro quando se coloca nestas condições".
O aumento dos ataques sexuais ao longo dos últimos dois anos desencadeou uma nova disputa quanto a quem atribuir a culpa, e o debate se tornou uma ilustração gritante e dolorosa das convulsões que torturam o Egito à medida que ele tenta se reinventar.
Durante o governo de Hosni Mubarak, a polícia onipresente manteve a agressão sexual fora das praças públicas e da vista do público. Mas, desde a saída de Mubarak, a retirada das forças de segurança permitiu que a agressão sexual explodisse a céu aberto, aterrorizando as mulheres egípcias.
As mulheres, no entanto, também têm aproveitado outro aspecto do colapso da autoridade –denunciando, através da mídia que se tornou mais agressiva, e desafiando os tabus sociais para exigir a atenção para um problema que o antigo governo negava com frequência. Ao mesmo tempo, alguns funcionários islâmicos eleitos usaram suas novas posições para desabafar alguns dos impulsos mais patriarcais da cultura tradicional do Egito e uma profunda hostilidade contra a participação das mulheres na política.
As mulheres que são vítimas de ataques contribuíram para que eles acontecessem ao participar dos protestos públicos, dizem esses oficiais. "Como é que elas pedem ao Ministério do Interior para proteger uma mulher quando ela está entre os homens?", perguntou Reda Saleh Al al-Hefnawi, legislador do partido político da Irmandade Muçulmana, durante uma reunião parlamentar sobre o assunto.
A revolução inicialmente prometeu reabrir o espaço público para as mulheres. Homens e mulheres se manifestaram juntos na praça Tahrir, pacificamente, durante os inebriantes 18 dias e noites que levaram à derrubada de Mubarak. Mas, poucos minutos depois de sua partida, a ameaça ressurgiu no ataque de um grupo contra a correspondente da CBS News Lara Logan. Não há estatísticas oficiais sobre o número de mulheres atacadas --em parte porque poucas mulheres relatam os casos--, mas todos reconhecem que os ataques têm ficado mais ousados e violentos.
No segundo aniversário da revolução, em 25 de janeiro, o núcleo simbólico da revolta --a praça Tahrir-- se tornou uma área perigosa para as mulheres, especialmente após o anoitecer.
Durante uma manifestação naquele dia contra o novo governo liderado pelos islamistas, uma onda extraordinária de agressões sexuais --ao menos 18 confirmadas por grupos de direitos humanos, e mais de acordo com o Conselho Nacional de Mulheres semioficial do Egito-- chocou o país, tirando a atenção do público do presidente Mohammed Mursi e dos diplomatas ocidentais.
Hania Moheeb, 42, jornalista, foi uma das primeiras vítimas a falar sobre sua experiência naquele dia. Em uma entrevista para a TV, ela contou como um grupo de homens a rodeou, tirou sua roupa e a estuprou por cerca de 45 minutos. Os homens gritavam que estavam tentando resgatá-la, Moheeb lembrou, e quando uma ambulância chegou ela já não conseguia mais diferenciar quem a estava atacando de quem a estava defendendo.
Para aliviar o estigma social geralmente ligado às vítimas de violência sexual na cultura conservadora do Egito, seu marido, Dr. Sherif Al Kerdani, apareceu ao lado dela. "Minha mulher não fez nada de errado", disse Kerdani.
Dos 18 ataques confirmados naquele dia, seis mulheres foram hospitalizadas, de acordo com entrevistas conduzidas por grupos de direitos humanos. Uma mulher foi esfaqueada em seus genitais e outra precisou de uma histerectomia.
Depois disso, vítimas de outros ataques sexuais ao redor praça Tahrir ao longo dos últimos dois anos também se manifestaram. "Quando vejo a rua Mohamed Mahmoud na TV em casa, minha mão automaticamente segura minhas calças", disse Yasmine Al Baramawy  em uma entrevista na TV, recordando seu próprio estupro em novembro passado.
Ela e uma amiga foram cercadas cada uma por um grupo de homens, disse ela. Alguns alegaram que a estavam protegendo dos outros, mas eles se juntaram no ataque. Os homens usaram facas para cortar a maior parte das roupas de seu corpo e depois a colocaram seminua sobre o capô de um carro. Em seguida continuaram torturando-a durante uma lenta viagem de uma hora para um bairro próximo, onde ela disse que moradores finalmente intercederam para resgatá-la.
"Eles disseram às pessoas que eu tinha uma bomba em meu abdome para impedir que alguém me salvasse", disse Baramawy.
Os ataques enfatizaram o fracasso do governo Mursi, com suas ligações com o braço político da Irmandade Muçulmana, em restaurar a ordem social. Os comentários de aliados islâmicos do presidente culpando as mulheres foram embaraçosos.
Pakynam al-Al Sharkawy, assessora político do presidente e a mulher de mais alto escalão em seu governo, classificou essas afirmações como "completamente inaceitáveis".
Ela atribuiu os ataques à degradação geral da segurança, mas também à recusa dos manifestantes em permitir que a polícia entrasse na praça desde a revolta contra Mubarak. "Os manifestantes insistem em manter a segurança fora da praça, até para regular o tráfego", disse ela.
No domingo, o governo Mursi convocou uma reunião de mulheres para discutir planos para o avanço da questão. Até agora, porém, a medida mais concreta para resolver o problema é um projeto de lei para criminalizar o assédio sexual.
Mas os defensores dos direitos das mulheres dizem que a lei não fará nada para protegê-las das atitudes na sociedade e do desprezo que as vítimas de estupro enfrentam em hospitais e delegacias de polícia --para não mencionar o Parlamento-- quando tentam fazer queixas legais.
Moheeb disse em uma entrevista que, depois que foi estuprada, as enfermeiras a aconselharam a não falar nada para proteger sua reputação.
Com a proteção policial negligente, algumas mulheres estão tomando sua segurança em suas próprias mãos. Num protesto recente para chamar a atenção para os ataques sexuais, várias mulheres seguraram facas acima de suas cabeças.
"Não se preocupe comigo", disse a advogada Abeer Haridi, de 40 anos. "Estou armada."
Os membros da elite política, enquanto isso, parecem mais preocupados em culpar uns aos outros. A Irmandade Muçulmana "planejou o assédio sexual na praça Tahrir" para intimidar os manifestantes, afirmou Mohamed Abu Al Ghar, presidente do Partido Social Democrata egípcio.
A Irmandade Muçulmana disse que os líderes da oposição "ignoraram a festa brutal de assédio e estupro" na praça, de acordo com um artigo no site da Irmandade. Os estupros são "uma desgraça para eles", a coluna declarou.
Outros parlamentares da Irmandade culparam os organizadores dos protestos por não separarem os manifestantes por gênero, como os islâmicos costumam fazer.
Alguns islamistas ultraconservadores, que agora têm poder político ao lado da Irmandade, condenaram as mulheres por denunciar os ataques. "Você vê essas mulheres falando como ogros, sem vergonha, polidez, medo ou até mesmo feminilidade", declarou um pregador de TV, Ahmed Abdullah, conhecido como xeique Abu Islam. Uma mulher assim é "como um demônio", disse ele, perguntando-se por que alguém deveria simpatizar com aqueles mulheres "nuas" que "foram lá para serem estupradas".
Moheeb chamou esses comentários de "escandalosos" e acusou os parlamentares islâmicos de serem cúmplices. "Quando pessoas comuns dizem coisas assim, pode-se usar a ignorância como desculpa", disse Moheeb, "mas quando alguém no legislativo faz esses comentários, eles estão incentivando os estupradores".

Reportagem de Mayy El Sheikh e David D. Kirkpatrick para o The New York Times, reproduzida na UOL. Tradução de Eloyse de Vilder.

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