quarta-feira, 5 de janeiro de 2022

Pendências cármicas de Bolsonaro


"Espero que eu não tenha que retornar antes", disse o presidente Jair Bolsonaro a respeito de suas férias em Santa Catarina. Os deuses não o ouviram. Ele teve de retornar antes e está internado em São Paulo. Perdoem-me hinduístas e espíritas, mas não penso que o Universo tenha um departamento de contabilidade. Foi azar, não a justiça divina, que levou Bolsonaro ao hospital.

Reconheço, porém, que a ideia de que vivemos num mundo justo, no qual as pessoas são recompensadas ou punidas por suas ações, tem apelo. Aliás, nem sou eu quem reconhece, mas a psicologia. O nome técnico desse viés cognitivo é justamente falácia do mundo justo. Ele está em todos os cantos, de Hollywood às histórias infantis, passando por ditos populares como "aqui se faz, aqui se paga", "tudo acontece por um motivo". É particularmente saliente nas religiões, nas quais a retribuição pode vir à vista, na forma de um repentino castigo divino, ou a prazo, em outras vidas.

Foi o psicólogo Melvin J. Lerner quem inaugurou os estudos sobre o mundo justo, nos anos 60. Não é preciso ser um Sherlock Holmes para constatar que a injustiça é a regra em nosso planeta. Coisas más acontecem a pessoas boas e coisas boas acontecem a pessoas más. Ainda assim, a crença numa justiça fundamental por trás das aleatoriedades dos acontecimentos é prevalente nas mais diversas culturas.

Para Lerner, as razões são funcionais. Ela serve para que não abandonemos a ideia de que podemos influenciar o mundo de modo previsível, isto é, de que é possível planejar o futuro —o que tem óbvio valor adaptativo. Estudos subsequentes mostraram que a crença num mundo justo é fundamental para a saúde mental, ainda que nos torne piores intérpretes da realidade.

Basicamente, é o acaso que dá as cartas no mundo, mas não sou eu quem vai protestar se um deus vingador se materializar e fizer Bolsonaro acertar as suas pendências cármicas.


Texto de Helio Schwartsman, na Folha de São Paulo.

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