segunda-feira, 3 de janeiro de 2022

Nada contra os deboístas, mas peço licença para exaltar a classe dos antipáticos


Fui secar a louça e estava escrito "good vibes" no pano de prato. Nisso, recebi spam com "Os 100 Segredos das Pessoas Felizes" e, na mesma tarde, tomei fechada de um carro cujo adesivo perguntava: "Já sorriu hoje?".

Peraí, gente. O ano mal virou. É como se apontassem um emoji de gratiluz pra nossa cabeça. "Mãos ao alto! Faz o gesto do coraçãozinho! Você está cercado!"

Não é de hoje que vivemos a era dos sorrisos implacavelmente brancos e escancarados, da brodagem de guerrilha nas redes sociais e de figuraças exuberantes que são o centro das atenções e dos likes. Uma genteboíce quase compulsória, que tem como lema o "urruuu, TMJ", ou tamo junto.

Nada contra o simpático, essa criatura fofa e supostamente aberta ao outro, que vive numa performance pública constantemente gracinha. No entanto, peço licença para destacar outra classe que reúne os tímidos, os inadequados, os que grunhem e os que suam nas mãos —aqueles que, por falta de empatia coletiva, acabam rotulados de "antipáticos".

Do filósofo Schopenhauer ao smurf Ranzinza, há toda uma gama desses seres polêmicos e pouco empolgados que existem à margem da simpatia-ostentação, ainda assim capazes de exercer fascínio. Do contrário, não amaríamos tanto —na vida e nos filmes— professores durões que ensinam uma lição, mordomos frios que leem poesia escondido e até alienígenas cruéis que na hora H desistem de exterminar nosso planeta.

Um dos casos mais contundentes da crônica antipática brasileira é o da bolete Zulu, dona de uma luz própria que emanava não das lantejoulas de seu collant, mas do fato de jamais sorrir enquanto bailava no palco do "Clube do Bolinha".

De cara sempre amarrada, virou fenômeno. Mais de 30 anos depois, porém, foi preciso que um programa sensacionalista revelasse ao Brasil que Zulu ria sim, mas por dentro. Sofria de paralisia facial.

Cada pessoa tem seu jeito, seu tempo e seus motivos. Ao aceitar isso, passei a me dedicar às amizades mais difíceis. Tipos monocórdicos, desanimados e tensos já me salvaram de perrengues e ofereceram ombrinhos confortáveis, enquanto outros, populares e carnavalizantes, nem tchuns.

Isso sem falar nos elogios deles —que, de tão raros, são preciosos. Dá vontade de emoldurá-los na parede, carinhosamente ao lado da plaquinha de "cuidado, cão bravo".

Em 2022, que a gente saiba conviver e valorizar os não-facinhos. A colega de trabalho caladona, um dia, pode se oferecer para regar suas plantas enquanto você viaja. E o vizinho que não deu "boa tarde" hoje, amanhã vai lhe ajudar com as sacolas de supermercado. Vamos convidá-los para mais festas —e se não aparecerem, tudo bem. Às vezes dá preguiça mesmo, TMJ. Sem o urru. Ou com um pouquinho de urru, ok. Faz parte.


Texto de Bia Braune, na Folha de São Paulo

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