sábado, 22 de janeiro de 2022

Alan Bennett, beirando os 90 anos, se divide entre o que vive e o que escreve


O escritor inglês Alan Bennett não faz sucesso no Brasil. Na sua terra, todavia, sem ser um monumento das letras, é um dos escritores mais queridos, um urso de pelúcia cujas peças, roteiros e memórias são fofas sem serem kitsch. Um monumento é inerte, enquanto o urso vivo, mesmo de pelúcia, às vezes eriça as garras e desce o braço.

Bennett é conhecido aqui por dois filmes, cujos roteiros escreveu a partir de peças suas. "As Loucuras do Rei George" trata da demência progressiva do soberano inglês que perdeu a guerra contra os colonos americanos, em 1776. Não é grande coisa, mas ganhou um Oscar.

"A Senhora da Van" —que em Portugal, onde se fala o idioma, se chamou "A Senhora da Furgoneta"— trata de uma sem-teto excêntrica que morou durante 15 anos na porta da casa de Bennett. Também não é grande coisa, mas tem Meggie Smith no papel principal.

Autobiográfico, o filme usa uma ferramenta narrativa eficaz. O personagem que narra, o próprio Bennett, é dividido em dois, ambos representados por Alex Jennings. Um é o homem que vive: o sujeito que lida com a pobretona doida que lhe atazana, e à qual se afeiçoa.

O outro é o homem que escreve: o que raciocina a sua relação com a mulher, toma notas, cogita torná-la protagonista de uma peça. Convenhamos, ninguém está interessado em saber como um escritor tem ideias e as amadurece. A não ser que seja outro escritor.

O dramaturgo sai desse beco metaliterário fazendo com que o homem que vive dialogue com o que escreve. E isso ocorre com todo mundo. A vida é um diálogo contínuo da pessoa consigo mesma —para decidir tomar um café, flertar, ser contra Alckmin na vice, mudar de emprego.

Bennett é um provinciano de Leeds, em Yorkshire, no norte. Filho de açougueiro, estudou russo e história medieval em Oxford, onde foi professor por anos, até se tornar dramaturgo e ator. É casado com Rupert Thomas, editor aposentado de uma revista chique de decoração.

Ele fará 88 anos em maio. Escreve um diário desde 1980. No primeiro número de janeiro, a London Review of Books publica páginas e páginas do diário relativo ao ano que vem de acabar. É algo que se aguarda como o papo com um amigo acerca do que lhe aconteceu nos últimos 12 meses.

Um amigo inteligente e observador. Nada de espetaculoso se passa com ele, mas conta as coisas miúdas com graça, alumbra os livros que leu, chicoteia a hipocrisia dos poderosos, fala mal de si mesmo. Tudo com uma leveza singela e, às vezes, indignação pungente, na medida.

A publicação dos diários gera cada vez mais reportagens e comentários nos jornais. Entende-se. Como seu autor é pré-nonagenário, não põe sua intimidade em cena nem busca o barulho de polêmicas. Apenas reage aos fatos que o cercam, mas o tom é de quem se despede da vida.

Como os publica há 40 anos, acompanha-se suas perdas e pavores, ainda que ele desdramatize seu sofrimento. Assim, depois de lhe tirarem um tumor do tamanho de um pão de queijo, e falarem que tinha menos de 50% de chance de ficar bom, comenta: "Foi uma chatice, mas tive sorte".

As críticas a si mesmo são doídas. Ao ver "O Morro dos Ventos Uivantes" com Rupert, seu parceiro comenta que ele parece Heathcliff. Gratificado, Bennet pergunta: "É mesmo?". Rupert explica: "É: difícil, nortista e babaca" (no original, o ultraofensivo "cunt").

Nos fatos políticos, sua prosa afiada fere fundo. Como quando o brasileiro Jean Charles Menezes toma, sem aviso, sete tiros da polícia no metrô. Ele imagina o que houve com o policial que, na "guerra ao terror", o matou: "Espera-se que não esteja mais por aí defendendo nossa liberdade".

Mas descobre que o meganha atirou meses depois noutro suspeito de terrorismo: "Ele melhorou a pontaria graças ao 're-treinamento' e, claro, ao 'aconselhamento' que recebeu". O critério para julgar um ato do governo como esse, diz, é se ele leva "uma pessoa a ter vergonha de ser inglês".

Bennett adapta aos diários a ferramenta do duplo narrador de "A Senhora da Van". Eles são uma conversa sincera e honesta do homem que faz com o homem que pensa no que fez e faz. O diálogo dele com ele é tão cativante que enreda quem o lê ao longo das décadas.

O brilho não está na ferramenta, e sim no talento de quem tem algo a dizer. Daí o dramaturgo reclamar dos "milhões de palpiteiros e cabeças ocas que tomaram a internet e regalam o mundo com sua empáfia. Não é bom falar. A maior parte do tempo é melhor ficar quieto --e isso inclui os dramaturgos".


Texto de Mario Sergio Conti, na Folha de São Paulo

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