sexta-feira, 2 de outubro de 2020

Transgressão pela vida

 Comunidades judaicas de todo o mundo celebraram recentemente o início do ano 5781. Como acontece em diversas tradições, o começo de um novo ciclo é uma oportunidade de reflexão. O ano de 5780 foi marcado pelo enorme desafio da pandemia de Covid-19, e uma das respostas judaicas a esta crise foi o “telejudaísmo”, a transgressão com o intuito de preservar vidas.

Judeus, israelitas, macabeus, filhos de Israel, de tradição mosaica. São sinônimos, com diferentes nuances, para designar aqueles que fazem parte do mesmo grupo. Contudo, de todos os nomes, existe um que é o mais antigo e que, a meu ver, melhor explica a natureza desse povo.

A nomenclatura dada ao primeiro monoteísta, patriarca desse povo, foi hebreu. “Ivrí”, em hebraico, significa “aquele que veio da outra margem”, “do outro lado”; aquele que atravessou o rio Eufrates. Os rabinos expandiram a noção geográfica da nomenclatura e interpretaram que ser hebreu é cultivar opiniões próprias, ter possibilidade de debater, de nadar contra a corrente, de criticar, discordar, transgredir.

Nas palavras do Midrásh (livro judaico de alegorias): “Quando todo o mundo se encontrava em uma margem, ele [Abraão] passou para a outra margem”. Ou seja, foi aquele que rompeu com usos e costumes de toda uma geração. Foi a pessoa que abandonou a idolatria e o paganismo e partiu para algo novo, original, inédito e, portanto, transgressor.

Desde então, hebreus e hebreias são desafiados, em cada geração, a seguir a tradição da transgressão, com toda a ambivalência que isso significa. Na maneira como eu vejo o judaísmo, seguir é romper; dar sequência é violar; continuar é infringir; e ser fiel é transgredir.

A transgressão, no entanto, não pode ser um fim em si mesmo. O objetivo, por trás dela, deve ser a manutenção da saúde e da vida, a busca de justiça, o fortalecimento da ética e a consolidação da paz.
Em 5780 fomos desafiados, uma vez mais, a transgredir. A pandemia nos colocou em um modo especial de preservação da espécie em que a ordem, novamente, foi resguardar a vida. Naquele ano, nasceu o “telejudaísmo” e foi criada a “Zoomnagoga”. A Congregação Israelita Paulista (CIP), minha sinagoga, transportou todos os nossos serviços religiosos para o ambiente digital.

Certa vez, um monge e seu discípulo foram atravessar um rio. Encontraram uma mulher que tinha medo de fazer, sozinha, aquela passagem. O monge, então, carregou aquela pessoa nas costas até a margem seguinte. Agradecida, ela se despediu e partiu. O monge e seu discípulo passaram três dias caminhando depois daquela travessia sem conversar. Em determinado momento, o discípulo quebrou o silêncio e perguntou: “Como você foi capaz de cometer tamanha transgressão e carregar uma mulher nas suas costas durante aquela travessia?” Ao que o monge respondeu: “Eu a levei até a outra margem, você continua carregando-a três dias depois”.

A fé é muitas vezes associada à nossa capacidade de reproduzir o conhecido, repetir o roteiro, manter-se fiel ao script. Para isso, não precisamos de fé. Segundo a minha teologia, a fé está justamente na nossa possibilidade de inovar, de arriscar e de transgredir.

Sinto orgulho de pertencer a uma congregação que, em 5780, abraçou o desafio transgressor de se manter próxima a seus congregantes, preservando a saúde de todos. Soubemos seguir a tradição de hebreus e hebreias e, mesmo quando muitos permaneceram presos à outra margem, optamos pela transgressão de escolher pela vida.


Reprodução de texto do rabino Michel Schlesinger, na Folha de São Paulo.

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