quinta-feira, 1 de outubro de 2020

Após 4 meses longe do Rio, voltei para reclamar minha cidadania torta

 Sou um carioca relutante. Adotado, esclareço. No passaporte e no RG, está lá, naturalidade: Uberaba (MG). Mas a vida me fez meio carioca. Ainda bem.

Depois de quatro meses longe do Rio, senti a necessidade de reclamar essa minha cidadania torta. E fui então “visitar” a cidade que aprendi a gostar quase sem querer.

Foram mais de 20 anos divididos entre Rio e São Paulo, por conta do trabalho. A rotina na TV Globo exigia que eu passasse não só fins de semana entre os cariocas, mas às vezes quatro ou cinco dias.

Cansado da vida de hotéis, em 2010 comprei no Jardim Botânico o que os franceses chamam de um “pé-de-terra”. Era o que faltava para, gastando meu “mineirês”, “apaixonar com” a cidade.

É fato que cresci em São Paulo e, por isso, demorei para me acostumar ao estilo de vida no Rio. Se na primeira cidade o convite “vamos marcar alguma coisa lá em casa” é levado a sério, na segunda ele significa “vamos ver quando a gente se esbarra de novo na rua”.

Não estou criticando, só assinalo que o estilo de vida carioca é “da porta para fora”. E, se você quiser realmente se apaixonar por esse lugar, melhor se acostumar a conviver com os amigos nas praias, nos bares, nas calçadas.

Desde que tive um apartamento na cidade, mesmo longe da orla, fui entendendo mais e mais o que significa essa pulsação tão peculiar. A ponto de, quando fui desligado da Globo e vim para São Paulo trabalhar na paulistíssima Bandeirantes, começar a sentir saudades de viver no Rio.

Não estava exatamente incomodado com isso. Virei adulto em Sampa e aqui me fiz jornalista, começando inclusive na Folha. Assim, conheci e amei cada canto da paulicéia —nem sempre desvairada. E estava contente por voltar a ela.

Mas o Rio, sentia, estava me chamando, e então aquiesci. E foi colocar os pés no meu apartamento, abrir a janela e respirar o verdume do Parque Lage que ela me oferece para todo aquele amor voltar.

Estou falando, que fique claro, desse mesmo Rio que, como você vê no noticiário, sofre (de novo) com seus administradores incompetentes e corruptos. O mesmo Rio que não respeita as regras de isolamento. O Rio da carteirada do pseudoprivilégio da classe média branca.

Mas é também o Rio da descontração, da mistura fina, do verde e do azul, da convivência gentil. E que, para minha surpresa, em tempos de pandemia, inclui visitas às casas dos amigos.

Circulei pelas ruas somente em uma ocasião: um fim de tarde de sexta, quando fui a não só um, mas dois botequins em Humaitá. Sentei em mesas distantes e não percebi aglomeração nas calçadas.
Tomei no entanto alguns chopes bem gelados que refrescaram minha alegria. Comi petiscos bem safados e gostosos. Conversei e ri alto. Recuperei minha alma carioca.

Passei longe das praias, mas comi e bebi com amigos em suas salas, reclamando da vida com desdém, costurando planos para quando tudo passar. E em cada varanda, cada terraço, cada janela em que fazia um brinde, olhava em volta e me lembrava de como era bom me sentir carioca.

Em nenhum lugar, porém, senti isso tão forte quanto no meu próprio espaço. Ainda mais quando encostava os cotovelos na minha sacada, virava meu pescoço para a direita e via o Corcovado e aquele gigante de braços abertos.

Sim, eu moro no “sovaco do Cristo”. E é daqui, transbordando de inspiração, que vivo de novo essa simbiose entre caos e beleza, encarno esse misto de turista e residente e sou feliz o suficiente para lembrar até os trechos menos cantados de “Cidade Maravilhosa”.

“Jardim florido de amor e saudade
Terra que a todos seduz
Que Deus te cubra de felicidade
Ninho de sonho e de luz...”


Texto de Zeca Camargo, na Folha de São Paulo

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