sexta-feira, 21 de agosto de 2020

No more lives

 Não custa nada fazer uma live. Você não precisa sair de casa nem tirar o pijama. Meus pijamas são todos pretos, então estou sempre pronta para fazer uma live. Meu escritório tem uma bela estante de livros, logo eu já nasci pronta para as lives. Sempre que alguém me convida para uma fucking live (e isso acontece pelo menos duas vezes a cada semana), eu penso em recusar. Eu nem termino de ler ou ouvir o convite e já vou encostando a língua atrás dos incisivos centrais para dizer não.

Minha vontade, na real, é responder: “Não, pelo amor de Deus, apenas parem, por favor, socorro!”. Mas acabo topando.

Eu não aguento mais fazer ou ver lives. Às vezes, no meio de uma live de que topei participar, vai me dando uma leve vontade de desfalecer. E eu me prometo, me juro, que nunca mais farei uma live. Mas faço outra e mais outra. Porque, no fundo, não me custa nada. Talvez me custe o bom humor e a disposição de seguir viva durante o dia do evento. Mas faço de casa e de pijama.

A verdade é que não custa nada fazer uma live. Se a pessoa que me chama tem alguma ligação com cinema ou televisão, tenho medo de fechar portas. Se é jornalista, tenho medo de estar negando carinho a esse guerreiro sobrevivente. Se é de editora, eu faço por devoção a essas boas almas que ainda insistem na existência de um mercado editorial. Se é psicanalista, eu faço porque é minha mais nova profissão-fetiche. Eu gosto das pessoas que me pedem lives, mas odeio que elas me peçam isso. E odeio fazer ou ver lives. Odeio. Muito. Mas não me custa nada e acabo fazendo.

Negar uma live é como negar um bom-dia, um “quer?” ao abrir um chocolate. Não é nada disso. Live toma meia hora ou uma hora do seu dia. E umas cinco horas antes da live eu já estou tão puta da vida por ter topado essa chateação, que não consigo fazer mais nada a não ser me martirizar e esperar pela live. E umas duas horas depois eu ainda estou cansada, porque fico exausta e sofro antes, durante e depois da live.

E quando, na live, a pessoa me pergunta sobre método de trabalho (que, no meu caso, consiste apenas em sentar na frente do computador e escrever) ou sobre “o que meu livro tem de verdade e o que tem de inventado” (como se fosse dado a quem escreve ter essa noção), eu sinto a grosseria subindo pela minha laringe. Eu sinto a bile tomando forma de palavra. Mas apenas respondo que prefiro trabalhar pela manhã. De preferência depois de regar plantas, entoar mantras e alisar um gato preto. Porque eu me cobro, uma vez que topei a caralha da live, ser excêntrica, especial e misteriosa. Isso tudo, toda semana. E eu recebi um e-mail do diretor de redação deste jornal me pedindo que não usasse mais palavrão nos meus textos, mas não dá pra falar de live sem usar “caralha”.

Apesar de me custar demais fazer lives, não custa nadinha. Não precisa estudar o tema, porque os assuntos são sempre “filhos na quarentena”, “casamento na quarentena”, “criatividade na quarentena”, “sexo na quarentena”, “depressão na quarentena”, “home office na quarentena”, “home office x homeschooling na quarentena”, “ainda dá pra chamar cinco meses de confinamento de quarentena?” —e teve um cara que ousou bastante e me convidou para falar apenas de quarentena mesmo.

Pedir live já é pior do que pedir orelha de livro ou divulgação “da lojinha da minha prima” no Instagram. Essas coisas que a gente faz sem ganhar um centavo, apenas no amor, mas odiando quem pediu. Chega! Não faço mais! Eu sei que não me custa nada, mas bem que poderia começar a custar a quem pede.


Texto de Tati Bernardi, na Folha de São Paulo    

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