quarta-feira, 19 de agosto de 2020

Quando a carteira fala mais alto

 Gosto muito da expressão “put your money where your mouth is”, algo como “coloque seu dinheiro onde sua boca está” —perdão pela ignorância se tivermos algo equivalente. É como dizer: se o que você fala é isso tudo mesmo, por que não aposta? O inverso é bem válido. Costumo achar mais produtivo olhar para onde as pessoas estão colocando o dinheiro delas do que o que falam. Assim entendemos o negacionismo.

Ainda temos uma discussão sobre o papel humano no aquecimento global, como se a questão estivesse em aberto, graças ao financiamento de campanhas de desinformação por companhias de petróleo como a Mobil Oil. A mesma empresa que desenhou plataformas de exploração perto do Ártico que dependem do derretimento do gelo para serem viáveis. Plataformas que são construídas levando em consideração o aumento do nível do mar. Aquele aumento que em público dizem ser um exagero.

Um esforço conjunto da faculdade de jornalismo de Columbia, a Columbia University Graduate School of Journalism, e do jornal Los Angeles Times mostrou como as grandes produtoras de petróleo mundiais como a Exxon construíram plataformas, dutos e estradas se prevenindo contra tempestades mais severas ou o aumento do nível do mar previstos pelos modelos climáticos que descrevem o aquecimento global. Preveniram-se do aquecimento que ajudam a causar. A boca dizia que isso é um mito, que as mudanças são incertas e os modelos climáticos estão errados. A carteira pagava para proteger os investimentos contra esse mito, usando os modelos, desde pelo menos 1989! No que acreditar? Tendo a achar que ações falam mais alto.

Covid-19 é um risco ou um exagero? Muitos empresários, cujo sucesso depende de entender projeções matemáticas, crescimento exponencial e estatística básica, defendem que a quarentena está acabando com a economia e deveríamos retomar a vida normal. Seus funcionários deveriam ter escolas funcionando onde deixar os filhos. O comércio já deveria ter normalizado. As pessoas precisam trabalhar. Vários ótimos argumentos. Feitos pelos empresários da segurança de casa, claro. Do autoisolamento. Até vemos negadores circulando, abraçando pessoas na rua e sem máscaras. Mas entre quem tem um pouco de inteligência, a história é outra.

Entre empresas que vivem de inteligência de dados, como o Google, todo mundo entrou em home office desde o começo de março, e vai continuar até o meio de 2021. Pelo menos. Uma empresa que analisa dados e tendências entre as mais valiosas do mundo já tinha mandado seus funcionários para casa antes dos países começarem a decretar quarentena. E não vai trazê-los de volta tão cedo. Mas funcionários do Google podem trabalhar remotamente. E quem não pode, o que faz? Que tal olhar para onde vai o dinheiro de novo.

Enquanto alguns de seus cidadãos se negam a usar máscaras, os EUA tentaram impedir a fabricante de máscaras 3M de exportar o equipamento produzido no país para o Canadá e a América Latina. Máscaras deveriam ser de americanos. Além de comprar doses prioritárias de várias vacinas em desenvolvimento, também tentaram comprar a exclusividade da candidata alemã CureVac. Não uma dose, não boa parte das doses, todas.

Nós distribuímos “kit Covid” para as pessoas retomarem a vida, uma combinação de cloroquina e ivermectina que tem a mesma comprovação para prevenir a doença que uma fitinha do Senhor do Bonfim, mas com efeitos adversos. Já os EUA compraram praticamente toda a produção inicial do medicamento remdesivir, porque ele parece ser promissor, ao mesmo tempo que nos mandaram a cloroquina que não estão usando. Trump defende que cloroquina funciona. Eu prefiro olhar para onde ele coloca o dinheiro.


Texto de Atila Iamarino, na Folha de São Paulo

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