quarta-feira, 4 de maio de 2022

Vai ter golpe


Saudade da época de poucas certezas. A minha única era que "amanhã é um novo dia". Parece-me, hoje, uma mistura de ingenuidade juvenil com crença na imortalidade, mas um tanto de boçalidade. Não faço ideia de como não morri lá atrás, não apenas uma vez, mas inúmeras delas, tal a certeza de que amanhã teria sempre um novo dia.

Mas se, de um lado, eu dava como certo que, fizesse chuva ou sol, o amanhã estaria ali na curva do horizonte, do outro lado, o que girava a roda da vida era um redemoinho de incertezas —e isso não era ruim. O futuro sem respostas, mas cheio de possibilidades, é ainda mais bonito do que um novo amanhecer.

Nessa curva da vida, imaginava que as certezas fossem chegando e que, enfim, me cansasse da adrenalina e pudesse só me acomodar numa caminhada com menos solavancos, mas com menos riscos de não estar aqui para um novo dia. A vida é uma coisa bem fácil de ser gostada, e a gente vai se apegando quanto mais o fim fica mais perto do que o começo.

E embora saiba mais coisas sobre a vida, sobre os homens, sobre a miséria humana, as certezas viraram desassossegos que têm consumido a mim e a todos ao meu redor a cada novo dia. Às vezes, tudo o que eu queria era só um tédio bem gostoso para abraçar e dormir mais um pouco. Mas o marasmo em que vivemos é só o das piores certezas.

Pode ser só pessimismo ou maturidade e overdose de informação. Nada se compara à ressaca que as notícias têm provocado. Nem vinho de garrafão me derrubava tanto quanto as manchetes dos jornais hoje.

Vai ter golpe. Bolsonaro só pensa nisso. As Forças Armadas estão ajoelhadas. As instituições não estão funcionando. O Legislativo e o Judiciário estão acovardados. A oposição ficou presa em 2002. A imprensa está falando com as paredes. E as paredes estão fazendo dancinhas no TikTok. Nunca haverá o Brasil que nos foi prometido. Amanhã pode não ter mais amanhã.


Texto de Mariliz Pereira Jorge, na Folha de São Paulo

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