quinta-feira, 26 de maio de 2022

Envelhecer ou ter uma deficiência ainda é a vida desvalorizada


"Ele tinha um talento arrebatador. Era o maior de todos, elaborava obras incríveis, era uma máquina de produzir, mas teve um AVC, coitado. Ficou afásico, já tá velho, né? Aposentou, parou tudo. Vai ficar em casa descansando."

Vivemos em um momento de ebulição do respeito aos corpos diversos, de valorização das individualidades e das tais liberdades, do reconhecimento das potências para além dos padrões, mas vamos parando por aí.

As avarias causadas pelo tempo, resultando na velhice, e as desgraceiras do viver sobre a carcaça humana, ocasionando deficiências de toda ordem, ainda fazem silenciar virtudes bem humanas e muito necessárias.

Seguir o curso sendo velho, seguir carregando alguma inconformidade física ou sensorial resiste como sentença de final da linha como "serumano" que pode produzir, contribuir intelectualmente e praticar cidadania.

O valor do corpo segue medido por suas funcionalidades e belezas, as inquietações e as infinitas possibilidades da mente são ocultadas quando o seu movimento não corresponde ao que se entende como atlético, dinâmico e performático.

O velho e a pessoa com deficiência são os entes sociais que mais padecem com a confusão do mundo moderno que mistura ser saudável com ser o puro creme do milho de Piracicaba, ser capaz de articular ideias e pensamentos com ter redes sociais ativas ostentando rebolados.

Chegou lá em casa, esses dias, um ensaio a respeito de "velhofobia" escrito pelo Orlando Miranda, que está na beirada dos 90 anos e é leitor atento de jornais e da contemporaneidade. O que vem primeiro, a capacidade de articulação dele em levantar questões a respeito desse "brabo" entrave social ou a vagareza natural de seus movimentos?

Não sou adepto da negação dos efeitos do passar do tempo na disposição e penso ser extremamente legítimo quem opta, por vontade própria, por descanso, mas o que resiste como viés bem consciente é a ligação do pleno funcionamento físico à importância produtiva, intelectual e de interação social.

Claramente, estamos chegando aos 50, aos 60, aos 70 anos, em decorrência de diversos avanços, com a sensação de que podemos viver como os 20, os 30, os 40 anos, mas essa revolução é lenta para se tornar realidade de forma conjuntural.

A regra segue sendo da retirada do velho de cena, sobretudo se ele tiver algum comprometimento natural dos sentidos ou do físico, pois aí, o capital humano é praticamente falido. Velho custa caro, ocupa lugar de graça no transporte público, fura a fila, atrapalha o jovem que precisa trabalhar, se lascar para ficar velho e ter prioridade de atendimento.

Temos pouquíssimo tempo para sermos jovens, tragados pelas obrigações de ganhar algum dinheiro, e está sobrando tempo demais para vivermos o abandono e o isolamento da velhice, tempo de esgotamento de qualquer dinheiro, quer seja pelo custo de querer voltar no tempo, quer seja pelo tanto que se gasta na pura e dura sobrevivência.

Nenhum debate a respeito de diversidade vai ser, de fato, transformador se não botar todas as essências do humano em seu escopo. O atendimento dos clamores por novos olhares sobre o velho e sobre a pessoa com deficiência, seguirei batendo o bumbo, está ficando para trás.


Texto de Jairo Marques, na Folha de São Paulo

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