quarta-feira, 18 de maio de 2022

Mario Vargas Llosa, que prefere Bolsonaro a Lula, deveria ficar quieto


Eu já estava grandinho quando assisti, pela TV Cultura, a uma entrevista com o crítico literário e pensador católico Alceu de Amoroso Lima (1893-1983). Muito bem disposto, ele contava histórias de sua longuíssima vida.

Perguntaram a ele sobre a redemocratização do país e sobre suas esperanças políticas. Ele tinha muitas, naquele momento, mas acabou lembrando que seu maior momento de entusiasmo já tinha passado.

"É mesmo?", perguntou alguém. "E qual foi esse momento?" Com vivacidade, Alceu Amoroso Lima respondeu: "A campanha presidencial de Ruy Barbosa".

Ninguém sabia o que responder. Aquilo vinha da mais profunda noite do passado; parecia impossível que alguém capaz de vibrar com o movimento civilista de 1910 ainda pudesse ser entrevistado na televisão. Ele foi adiante, lembrando ter sido um dos primeiros a ter dançado o tango em Paris. Em suma, sua velhice era de tal ordem que parecia impossível que ele ainda estivesse vivo.

Elizabeth 2ª prepara-se para comemorar seus 70 anos de reinado e, com falhas mais frequentes nos últimos tempos, ainda participa de solenidades e chás. Reconheça-se que começou a usar bengala. Mas não se duvida de que participará de seu jubileu de platina, avançando aos poucos na competição para destronar (epa) Luís 14, rei da França por 72 anos e 110 dias, conforme calcula a Wikipédia.

Depois da platina, o que mais? Talvez seja necessário seguir a tabela dos elementos químicos, instituindo os jubileus de urânio, de plutônio e assim por diante.

A rainha está sem dúvida mais em forma do que seu súdito Alan Bennett, nascido em 1934. O dramaturgo, conhecido pelo roteiro do filme "A Loucura do Rei George", publicou agora na Inglaterra seu diário da quarentena, intitulado "House Arrest", ou prisão domiciliar. É um livro curtíssimo, como se poderia esperar de alguém com as forças em declínio.

Bennett assiste pela TV a uma aparição da rainha, depositando flores num monumento às vítimas da guerra. Obedecendo ao protocolo, ela tem de dar alguns passos para trás depois de feita a homenagem.

Eu já não seria capaz de fazer isso, diz o teatrólogo. Faz caminhadas curtíssimas (três minutos), de bengala; seu aparelho de surdez nem sempre funciona, e quando foi tomar a vacina de Covid perguntou se era ali mesmo a "fila do vírus".

As entradas do diário se resumem, por vezes, a curtas citações. Do pintor Lucian Freud, ele registra uma frase. O que o artista faz "é dizer aos outros que esteve vivo".

O livro de Bennett segue o preceito, sem grande entusiasmo, mas sem tristeza. Descreve uma velhice "normal": a vida vai se extinguindo como uma vela, num lago de parafina.

Fico pensando no caso oposto, o de Mario Vargas Llosa. Era liberal e antipopulista quando se candidatou à Presidência do Peru em 1990. Mas, de lá para cá, radicalizou-se a valer.

Defendeu um extremista de direita nas últimas eleições chilenas, e agora, contra Lula, diz preferir Bolsonaro. Será que Vargas Llosa se vacinou? Ou andou fazendo reposição de testosterona?

Certamente, uma dose de antirrábica lhe faria bem. Se fosse para agir racionalmente, pensando em sua obra como escritor, ele só teria a ganhar ficando quieto. Talvez Vargas Llosa se sinta liberado pela velhice. "Quer saber? Que todos se danem. Já ganhei o prêmio Nobel, pertenço às academias peruana e espanhola, e o rei Juan Carlos me concedeu o título de marquês. Quem não gostar que vá chupar coquinho."

Imagino outra razão para o processo. O sujeito começa razoável e civilizado: condena as perseguições a escritores em Cuba, não faz vista grossa a casos de corrupção de esquerdistas, entra na onda da globalização… E, num belo dia, descobre que o atacam.

Logo ele, tão respeitado e querido! Como assim? Me xingam de neoliberal, de direitista, de fascista? Mas sou civilizado, bonito, charmoso…

A vaidade foi machucada a tal ponto, que o organismo intelectual aciona seus anticorpos. "Sou bom demais para querer consertar minha imagem pública." Sou tão lindo que deixarei meus dentes em petição de miséria, andarei pela rua com a braguilha aberta e esparadrapo na haste dos óculos. Haha, pensam que estou velho? Sinto-me mais macho do que nunca. Prova disso, apoio qualquer fascista que aparecer pelo caminho.

Como naqueles filmes sobre a vingança da múmia, é sempre uma forma de se dizer vivo.


Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo

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