terça-feira, 3 de maio de 2022

A crise existencial dos óvulos de uma mulher que não quer ser mãe


Sou um gameta reprodutivo feminino, conhecido como óvulo, e passei a maior parte da minha vida em um ovário, aguardando minha vez na fila da ovulação.

Fui condicionado a esperar um espermatozoide com uma linda narrativa de superação após vencer uma corrida insana entre milhões de adversários. Uma espécie de Usain Bolt que me fecundaria e, juntos, nos tornaríamos um só zigoto. Posso soar romântico, mas não me deram escolha a não ser me portar como uma Bela Adormecida que espera passivamente pelo príncipe encantado.

Eu sabia que a mulher que nos carregava não tinha a intenção de gerar filhos. Porém, nutria a esperança de uma gravidez não planejada, como quem espera um milagre. Orava por uma noite de excessos coroada por uma transa casual desprotegida que garantiria meu final de conto de fadas. É claro que minha progenitora não teria a mesma sorte, mas isso não era problema meu.

Essa esperança se tornava, a cada dia, mais escassa. Assim como meus companheiros, que, mês a mês, tinham sempre o mesmo destino. Não eram fecundados e se transformavam em menstruação, desembocando num copinho menstrual. Um final anticlimático para nós, mas recebido com alívio pela portadora do sistema reprodutor do qual fazíamos parte.

Pelo menos nossos guerreiros não se rendiam facilmente, agarrando-se nas paredes do endométrio, forçando o útero a expulsá-los com contrações cujo resultado era uma cólica brutal. Essa vingança era a única alegria que nos restava, já que o clima da fila não era dos mais animados. Vivíamos em constante crise existencial, oscilando entre o niilismo e o fanatismo religioso.

Até que, certo dia, algo estranho aconteceu. Fui capturado por uma agulha que me separou de meus irmãos. Tamanha foi minha surpresa ao descobrir que a mulher que um dia chamei de lar cedeu às pressões sociais e foi convencida por sua ginecologista a gastar milhares de reais para me congelar e assim postergar sua decisão de engravidar, ou não.

Hoje, mergulhado em nitrogênio líquido numa temperatura de 196 graus negativos, percebo que a vida nos ovários não era tão ruim assim. Talvez tenha me tornado muito frio, mas não acredito que ela voltará para me buscar. Observando o mundo aqui fora, compreendo enfim sua resistência. Devia ao menos ter trazido um agasalho.


Texto de Manuela Cantuária, na Folha de São Paulo

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