terça-feira, 21 de dezembro de 2021

O que sei eu? É o que pergunta Stefan Zweig antes de mudar o mundo


A melhor coisa do meu ano de 2021 foi ter regressado aos livros de Stefan Zweig. Que estupidez a minha! Li Zweig nos verdes anos e gostei da ficção. O seu "Beware of Pity", salvo melhor opinião, é um dos grandes romances do século 20 e um aviso sério sobre os abismos do "ressentimento", no sentido nietzschiano do termo. Se fosse diretor de cinema, já teria feito a adaptação desse livro para filme.

Já os ensaios, que são o melhor de Zweig, não me impressionaram da mesma forma. Por quê? Sei lá por quê. A estupidez tem razões que a razão desconhece.

Esse ano, regressei a eles. São soberbos e, mais que isso, intemporais. Falam diretamente para o nosso tempo, em parte por terem sido escritos quando Zweig contemplava a derrocada da Europa e o seu próprio naufrágio pessoal, que terminou como terminou em Petrópolis.

Hoje, com novas ansiedades a tomarem conta dos contemporâneos —a pandemia interminável; a sombra de uma guerra na Ucrânia e de outra em Taiwan; o fanatismo ideológico que destroça as democracias ocidentais etc.— os ensaios são objetos de reflexão e consolação. Alguém passou por tudo isso primeiro.

Já falei aqui do retrato que dedicou a Erasmo de Roterdã. Mas é o texto sobre Montaigne que mais me impressionou. É um ensaio de fim de vida, que hoje se lê como se fosse o testamento de Zweig. Também por isso, é uma prosa desencantada, que soa estranha aos nossos ouvidos progressistas.

A primeira ideia que Zweig desautoriza é a concepção bem moderna de que o progresso é uma estrada com um único sentido. Essa concepção nasceu com o cristianismo e foi depois secularizada pelo o iluminismo continental: a humanidade caminhará sempre para um estado superior de existência; mesmo os seus percalços não passam de acidentes momentâneos, que não mudam o rumo da jornada gloriosa.

Zweig, através de Montaigne, mergulha nos clássicos. Que, obviamente, tinham uma outra concepção de tempo: uma concepção circular, e não linear, segundo a qual tudo é efêmero e regressivo. Democracia?
É apenas a antecâmara da tirania, que depois será suplantada por uma aristocracia iluminada, até cair na timocracia, e depois na oligarquia, até chegar novamente à democracia. Quem pode dizer que Platão estava errado? Sim, quem pode garantir que, depois da trégua, não virá uma nova era de desolação?

Aconteceu. Na Alemanha, nos anos 1930, para desespero de Zweig. E na Europa humanista de Erasmo e de Montaigne, que soçobrou às mãos do fanatismo religioso pós-reformista.

Perante o caos, Montaigne entendeu (tal como Zweig) que o mais importante era salvar a sua liberdade interior, razão pela qual recuou para a famosa torre e para a composição dos seus "Ensaios".

Há autores que nunca lhe perdoaram: em hora de aperto, desertar é uma covardia e uma irresponsabilidade.

Não creio. Quando existe excesso de paixão nos outros, pretender manter a chama da razão, da tolerância e do ceticismo é como tentar parar as ondas do mar com os próprios dedos. Uma missão patética e inglória.

É por isso que os "Ensaios" sobreviveram: porque não tentam mudar os outros, mas apenas mudar um único homem —Michel de Montaigne. Mais ainda: mudá-lo pelo exercício metódico da dúvida.

É um gesto revolucionário: quando existe excesso de dogmatismo, haver alguém que se atreve a perguntar "que sais-je?" ("que sei eu?") ganha os contornos de uma blasfêmia.

Ler Zweig e os seus alter egos, mais que um prazer, é um exercício de imaginação: o que seria do nosso tempo se as pessoas, antes de quererem mudar o mundo, começassem por elas próprias? E o que seria dessas pessoas se, sozinhas e em silêncio, perguntassem pela primeira vez na vida: mas, afinal, o que sei eu?


Texto de João Pereira Coutinho, na Folha de São Paulo

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