terça-feira, 21 de dezembro de 2021

Minha geração sobreviveu à Disney e à Capricho, mas ainda traz sequelas graves


Hoje acordei naqueles dias. Não, esta não é mais uma crônica sobre menstruação. Para mim, a expressão "naqueles dias", um eufemismo para "expelindo sangue pela vagina", pode ter muitos significados. Tem dias que a gente acorda de ressaca, dias em que a gente acorda de TPM, dias que a gente acorda com a autoestima de um paninho de prato com uma mensagem bíblica cheia de erros de pontuação, dias que a gente acorda mais gostosa do que um brigadeiro de pistache e dias que a gente acorda se sentindo a pior feminista do mundo. É sobre esses dias, que geralmente evitamos falar, que estou falando agora.

Se você é mulher e não se considera feminista, eu não sei nem por onde começar. O fato de você ter sido alfabetizada e conseguir ler este texto é uma de tantas conquistas fundamentais do movimento que você critica. Mas este texto não é sobre você.

É sobre você, mulher engajada na luta pela igualdade entre os gêneros. E sobre as batalhas internas que essa luta demanda, das quais nem sempre é possível sair vitoriosa. A desconstrução é um processo, e ler "O Segundo Sexo" não nos protege automaticamente de sentir inveja da cinturinha alheia nem de se humilhar por causa de boy lixo.

Minha geração sobreviveu aos filmes de princesas da Disney e à revista Capricho, mas ainda traz sequelas profundas. É por isso que nem sempre conseguimos ser feministas exemplares e caímos, mais uma vez, na armadilha que o patriarcado preparou para nós: o sentimento de culpa e desconforto por não sermos perfeitas.

A vida real não é uma thread do Twitter. Se o mito da perfeição feminina já oprimia mulheres, criando ideais inatingíveis, com sua versão 2.0, o mito da perfeição feminista, não poderia ser diferente.

Quando acordo com a pior feminista do mundo me encarando no espelho do banheiro, sei que não estou sozinha. Ela se parece muito comigo, mas também com muitas mulheres que conheço. Devo ter sororidade com essa vaca? Sem dúvida.

Ela parece surgir das sombras para me lembrar que também devemos lutar pelo direito de errar sem perder nossas carteirinhas. Se não olharmos para o pior de nós, a transformação que buscamos —um processo comumente reduzido ao termo "empoderamento"— será tão improvável quanto um conto de fadas igual aos que crescemos assistindo.


Texto de Manuela Cantuária, na Folha de São Paulo

Nenhum comentário:

Postar um comentário