segunda-feira, 13 de dezembro de 2021

Entre chás e biscoitos, mortos sempre visitaram mulheres da minha família


A imagem é nítida. Eu andava pelas ruas do bairro, quando do nada bateu saudade. Então liguei para o número fixo que ainda sabia de cor. Tocou, tocou, tocou. "Alô?". Meu Deus, era a voz dela.

"Tia Fausta?"

"Oi, minha filha"

"Você tá... boa?"

"Eu? Tô ótima!"

"Mesmo?"

"Ué, por que não estaria?"

Tia Fausta tinha morrido havia meses. Tudo muito súbito, apesar dos seus 85 anos. O que, de certo modo, fazia daquele meu sonho um legítimo DDD para o Além.

Quando se é filha temporã num lar cheio de parentas bem idosas, você cresce convivendo também com o insondável, sobretudo ao vê-las lidando de forma tão natural com a morte. Minha avó Marietta falava que, após certa idade, sua visita deixava de ser uma questão. "E como são poucos os contemporâneos que me restam, fizemos amizade. Olhamo-nos de rabo-de-olho, uma tomando conta da vida da outra, até o dia do chá final". Sim, para vovó a morte não jogava xadrez. "Vamos juntas comer biscoito".

O mais divertido era quando a Implacável Senhora liberava seus defuntos para vir fofocar com minhas tias-avós. Mocinha, a mais velha, os via desde os tempos em que o apelido fazia sentido. Enquanto Joana, a do meio, não dava o braço a torcer. Apesar de muito católica, era do tipo que mantinha um jabuti no quintal desde que se curou de uma erisipela. E ficava indignada com aparições, a ponto de ligar para minha mãe.

"Veja você, que absurdo", dizia. "Tem um general do Exército sentado aqui no sofá. Já pedi para sair, mas até agora nada. Vou lhe tocar pra fora com a vassoura. Não respeito patente de morto!".

Mamãe gargalhava, tapando o telefone para não ferir os brios dogmáticos de titia. No entanto, ela mesma precisou se entender com o SPC kármico graças a meu avô. Alertada também por sonho que era preciso passar no armazém da esquina, lá constatou que o morto, sempre tão correto com dinheiro, havia deixado uma dívida no caderninho.

Fausta era a mais jovem das tias, minha favorita. Quase uma personagem de "A Casa dos Espíritos". Fazia trabalho voluntário, alegando ter interesse não por religiões, mas pessoas. "Desencarnadas ou não". E talvez por isso enxergasse tantos médicos de fraque e cartola, chegados de outra vida, quando ia junto com eles visitar seus enfermos.

Durante nosso telefonema sonhado, uma chance de ouro para assuntar enigmas do universo, tratei de lhe perguntar se Deus existia. "Minha filha, pelo que vi até agora, tudo indica que sim". E antes que desligássemos e eu tomasse nota, pois do contrário acordo e a memória do sonho escapa, Tia Fausta me apaziguou a alma. "Só não se preocupe conosco, viu? Estamos todas bem. Mandaremos notícias!". Então a ficha caiu: do lado de cá dá linha, eu havia me tornado uma delas.


Texto de Bia Braune, na Folha de São Paulo

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