sábado, 24 de abril de 2021

Viet Thanh Nguyen, vencedor do Pulitzer, desmistificou lugar de fala

 

Viet Thanh Nguyen nasceu no Vietnã. Tinha quatro anos quando, na véspera das tropas comunistas tomarem Saigon, em 1975, sua família fugiu para os Estados Unidos. Formou-se em Berkeley, casou com uma artista vietnamita, tem dois filhos e ganha a vida como professor universitário.

Estreou tarde na arte, aos 44 anos, ao publicar “O Simpatizante”, em 2015. Deu-se o inesperado: o romance vendeu 1 milhão de exemplares; levou o Pulitzer e uma penca de prêmios; ganhou elogios extáticos; abiscoitou bolsas, cátedras, colunas —lançado no Brasil pela Alfaguara, deu-se o esperado: ninguém o leu.

“O Simpatizante” é pertinente, inventivo e, o mais surpreendente, de rolar de rir. Começa com a queda de Saigon, onde o narrador tenta sobreviver ao barata-voa. Homem da CIA, ele é ajudante de ordens de um figurão do regime, um generaleco ensebado que lembra Augusto Heleno.

Só que não. Na real, é um espião infiltrado nas fileiras pró-ianques, um vermelho disfarçado de colabô que, na hora do bem-bom apoteótico, recebe a ordem de ir com os podrões para os Estados Unidos. Ali, vigiará Augusto Heleno, que treina uma milícia de palermas para retomar o Vietnã.

O enredo rocambolesco faz com que os personagens virem o contrário do que eram no início. Mas a constelação de temas se mantém: o refugiado como estrela-guia da sociedade atual; o racismo que o torna invisível; a humilhação perpétua como signo do novo tempo —como a do narrador, um vitorioso clandestino que se enterra na vala dos vencidos.

Com tudo isso, “O Simpatizante” esmerilha o “lugar de fala”, satirizando-o e o desmistificando. Seu narrador, por ser vietnamita e americano, estar lá e cá, separa a realidade da representação e finca a faca ali onde a ideologia pulsa —na má consciência da arte para massas.

Na cena mais bufa do romance, ele dá consultoria a uma superprodução americana sobre a guerra no Vietnã. Constata que os vietnamitas não têm direito a lugar nenhum, a uma reles fala. Amarelos em andrajos, suados e imundos, eles são estripados por americanos trágicos.

Fica claro que “O Simpatizante” não se refere a um hiperblockbuster do tipo “Rambo” —e sim a uma obra-prima do naipe de “Apocalypse Now”, com seus ecos de Conrad e Eliot.

O Vietnã de Nguyen não foi uma tragédia americana que enlouqueceu o coronel Kurtz de Marlon Brando. Foi uma épica nacional comandada e vencida por Ho Chi Minh —que, como repete o narrador, ensinou que nada é mais precioso que a liberdade e a independência.

Saiu há pouco nos Estados Unidos o esperado segundo romance de Nguyen, “The Committed”. Surpresa das surpresas, o protagonista comprometido de seu título é o mesmo de “O Simpatizante”, que agora quer ser burguês. Para fazer a acumulação primitiva de capital, trafica drogas.

Ele passou por um campo de reeducação no Vietnã, onde torturadores arrebentaram-lhe a alma, e está em, ulalá, Paris. Fala a língua por ser o filho bastardo de um padre católico com uma camponesa de 13 anos —seu apelido na bandidagem é Crazy Bastard.

Em busca de um nicho no mercado de haxixe e coca, ceva beletristas como o Maoísta PhD (inspirado em Alain Badiou) e BFD (um misto de BHL, o picareta Bernard-Henri Lévy, e DSK, o estuprador Dominique Strauss-Kahn). O escárnio é rombudo.

Rombudo em excesso, se bem que sempre hilário. A guerra entre os rufiões do norte da África e os do sul da Ásia, por exemplo, é uma pândega de porres e bordoadas. Como no romance anterior, contudo, “The Committed” não perde a perspectiva pós-colonial.

Ou seja, para franceses de bom berço, argelinos e líbios formam um bafafá indistinto, árabe e pardo. E a gangue multiasiática de Crazy Bastard não passa de sete anões de olho puxado, vendendo miojo por lámen no Delícias da Ásia, o pior restaurante oriental de Paris.

À medida que a violência incrementa a trama, crescem também as elucubrações filosóficas e políticas —o leão de chácara de um bordel lê Voltaire enquanto entretém a freguesia.

Doutas, as citações grifam a condição colonial: Fanon, Aimé Césaire, o Sartre de “o europeu só se tornou homem quando criou escravos e monstros”. O colonizado, pois, pode ser tanto Ho Chi Minh como Crazy Bastard.

A violência que impera não visa a libertação dos oprimidos, ao contrário: eles guerreiam entre si. Os tiroteios do capitalismo gangsterizado se sobrepõem à crítica, e “The Committed” se torna então um novo “Apocalypse Now” —com Bruce Lee de astro e Tarantino na direção.


Texto de Mario Sergio Conti, na Folha de São Paulo

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