sexta-feira, 23 de abril de 2021

Falar é perigoso

 

Faz uns dois meses que minha filha, com três anos, começou a formular umas frases mais complexas, meio poéticas. Ontem entrou no meu quarto e disse, em tom de sincerão: “Mamãe, você fala muito”. Eu ri, e ela continuou: “E falar é perigoso”. Tentei entender se isso vinha de algum desenho, de algum trecho de conversa que ela pescou pelo ar, mas ela insistiu: “Xiiiiu, mamãe, cuidado!”.

Por causa da pandemia, Rita ainda não voltou para a escola e eu ainda não voltei para a minha rotina de reuniões presenciais, fisioterapias supostamente milagrosas e encontros com amigos. Ficamos o dia inteiro enfurnadas aqui, e ela deve estar cansada da minha voz. Até eu estou cansada (e eu, de fato, falo pra cacete). Ao apontar meus excessos, estaria Rita me contando que corro o risco de ser vista por ela sem a minha potência?

Talvez. E outro exagero insuportável vem ocorrendo justamente com o uso da palavra “potência”. Desde que os publicitários, os psicanalistas, os escritores, as influencers feministas, os advogados, o administrador de condomínio do meu prédio, você, sua prima de 12 anos, sua tia do Zap e eu passamos a meter a palavra potência em qualquer texto, seja de Instagram ou de uma crônica aos 45 do segundo tempo (no caso, esta que você está lendo), a potência se tornou um falo tão brocha, mas tão brocha, que Freud precisaria repensar toda a sua teoria a partir da inveja de uma vagina silenciada.

Se há cinco anos o termo “empoderamento” foi tão usado, mas tão usado, mas tão usado, que me deu vontade de pedir para um professor de crossfit me sustentar enquanto eu lavava as suas cuecas, agora a potência me faz ter vontade de andar pelas ruas pelada e chorando, feito um boneco de posto alucinado, escancarando, ao mesmo tempo, a minha flacidez e a minha covardia.

Temo por mim em relação a outros abusos. Usaram tanto “afeto” e “empatia” que eu passei a achar que o egoísmo seria a única bandeira possível ao iconoclasta.

O que será de nós depois da derrocada simbólica e energética da episteme, do propósito, da linha tênue, dos corpos, da resiliência, da importância do brincar, do “vamo time!”, da jornada e do “performar”?

Pior do que “outros saberes” é essa modinha de escrever “saberes outros”. Amigo, você não é o Guimarães Rosa. Pare de inverter as coisas para parecer que está sentindo de um jeitinho muito especial. Pare de “muito sentir”. Se você achou algo inesperado, não diga “o inesperado” em uma frase isolada dentro de um blá-blá-blá para trazer toda uma dramaticidade, a menos que você seja irônico ou tenha deficiência de ferro.

Tudo bem que 99% das teses de doutorado tenham títulos como “Sobre como a potência dos propósitos afeta nossos corpos enquanto seres desejantes em relação à episteme”, mas, quando alguém escreve assim no Instagram ou em uma crônica aos 45 do segundo tempo, eu só consigo voltar ao meu velho desejo de performar uma coluna intitulada “No seu” e na qual a palavra “cu” é repetida em 3.500 caracteres. Não faça isso comigo.

No mais, hoje Rita me disse que era perigoso comer, tomar banho, fazer xixi e beber água. Ela só aprendeu a palavra “perigoso” e estava curtindo. Está tudo certo. Viver é muito perigoso.


Texto de Tati Bernardi, na Folha de São Paulo

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