sábado, 2 de dezembro de 2017

Personal existência

Márcia começou a trabalhar aos 17 anos. Morava num apê pequeno em Santa Cecília. Cozinhava comida baiana como ninguém, apesar de não ser baiana. Cozinhava comida árabe como ninguém, apesar de não ser árabe. Era uma estudante autodidata de francês e ioga. Gostava de fazer tudo a pé e entendia de pontos de ônibus melhor do que ninguém.
Foi crescendo na empresa e ganhando aumentos. Casou com um homem que foi crescendo ainda mais em sua empresa e tendo ainda mais aumentos. Morou numa casa gostosa em Perdizes, depois numa gigantesca em uma vila nos Jardins e recentemente abraçou a ideia bastante estranha de um dúplex dentro do mesmo condomínio que um shopping. Ela espirrava na sala e já tava na fila do Ráscal.
Nessa trajetória de ascensão, foi a primeira a ter personal pilates, personal fisioterapeuta, personal corrida, personal massagem modeladora e personal "arrumador de armários". Era uma quantidade meio descontrolada, mas como Márcia trabalhava muito, estava perdoada. Depois ela contratou um personal cuidador de cachorro, delegando passeios e cocôs para uma pessoa que passava o dia todo na sua casa apenas para isso mesmo: passeios e cocôs.
Então foi ladeira abaixo: seus dois filhos eram completamente assessorados por "personais" enfermeiras, cuidadoras, cozinheiras e educadoras. A personal analista da família ia até a casa dela, todos os dias, e até viajava com a família quando o personal agente de viagens conseguia emplacar uma dica personalizada. Se não me engano, a cachorra tinha uma personal analista que ia junto. O personal motorista era personal segurança. A personal secretária só podia falar com a personal governanta que, por sua vez, não podia falar com Márcia, o que fazia a personal secretária não ter a menor ideia do que era pra fazer.
Márcia nomeou um personal assistente para fazer todo o seu trabalho e um personal assistente do assistente somente para que o primeiro nunca ligasse incomodando. Ela nunca mais saiu de casa.
Cansada de ter que dividir a atenção do concierge do prédio com outros moradores, pagou do próprio bolso um personal porteiro. Seu Juca ficava sentado o dia todo na recepção do prédio, mas não podia dar bom dia a ninguém que não fosse Marcinha.
Um dia Marcinha contratou uma personal gêmea. Uma mulher bem parecida com ela que, após algumas intervenções com um personal cirurgião, ficou idêntica. A personal Marcinha ganhava pra ficar cinco minutos em festas infantis, lançamentos de livros, batizados e funerais. Quando era casamento de rico, a Márcia real preferia ir: pegava direto da fonte as dicas mais quentes das novidades do mercado de "personais". Agora tinha uma pessoa, parece, que era especializada em dar banho, comida na boca e até limpar a bunda. E não precisava ter problemas motores ou mentais, bastava ser como Márcia: muito rica e sem tempo pra nada.
Certa feita a personal Marcinha acabou fazendo um boquetinho amigo pro marido de Márcia. Márcia tinha acabado de fazer um "peeling renovação de luz" nas mãos, com sua personal de peeling renovação de luz de mãos, e estava cansada. Daí foi ladeira abaixo: personal Marcinha acabou aderindo a outras sacanagens, profundidades e posições.
Trancada em seu quarto há anos, sem ver ninguém, Márcia procura agora no Google alguém que possa morrer por ela. Um personal defunto Marcinha. Ela tá louca pra dar uma falecida, mas imagina o trabalho que não deve dar?


Texto de Tati Bernardi, na Folha de São Paulo

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