sábado, 16 de dezembro de 2017

Nas redes, ninguém tem a menor chance de convencer ninguém

É bem possível que você tenha lido "O Código da Vinci", de Dan Brown. Em 2015, o livro (que é de 2003) tinha vendido mais de 80 milhões de exemplares mundo afora e estava entre as obras literárias mais vendidas de todos os tempos.
Também é possível que você tenha visto o filme homônimo, de Ron Howard, com Tom Hanks no papel de R. Langdon, professor de "simbologia" (disciplina que não existe) na Universidade Harvard.
Ainda hoje, em Milão, é impossível visitar a "Última Ceia" sem que haja um turista tentando confirmar a interpretação do afresco proposta no livro e, no fundo, convencido que há, sim, um complô da Igreja para esconder que Jesus tinha se casado e tido filhos com Maria Madalena, sua discípula preferida.
Dan Brown acredita firme no poder da razão e das palavras –talvez essa seja uma das razões de seu sucesso. Ele acredita que o saber de Langdon pode resolver qualquer enigma. E, mais importante, ele acredita que a revelação de um segredo poderia mudar o mundo.
No "Código", há religiosos dispostos a matar para que não seja revelado o segredo do amor de Cristo por Madalena. Ora, essa revelação, no máximo, forçaria a Igreja a ordenar mulheres e a acabar com o celibato dos padres. Mas será que ela abalaria mesmo a fé de alguém?
No novo livro de Dan Brown, "Origem", ed. Arqueiro (menciono a premissa da história, sem spoilers), um cientista fará uma revelação incontestável que, se não for impedida, acabará com qualquer fé religiosa.
Adoraria acreditar, como Dan Brown, que uma argumentação correta e sustentada por provas válidas seria suficiente para dissipar erros e crenças. Mas não é o que ocorre. Abandonar uma crença, por mais que ela se revele errada, é dificílimo. Talvez os argumentos apresentados sejam sempre insuficientes. Mas o mais provável é que a gente seja fundamentalmente impermeável a argumentos racionais, sobretudo na hora de criticar nossas próprias crenças.
Esse fenômeno tem nome: viés de crença. Sobretudo desde os anos 1990, inúmeras pesquisas verificaram que nossa relação intuitiva e imediata com uma crença é, em geral, muito mais forte do que os argumentos que podem contestá-la.
A experiência clássica consiste em mostrar, aos indivíduos testados, silogismos em que os argumentos iniciais são inválidos, mas a conclusão é uma ideia na qual é fácil acreditar ou, então, silogismos em que argumentos obviamente válidos levam a conclusões nas quais os indivíduos não acreditam etc.
Em geral, descobre-se que os argumentos, mesmo válidos, contam menos do que as crenças. De onde será que nasceu nossa confiança milenária na razão? E o que é que parece nos tornar sempre crédulos?
Deixo as perguntas de lado (momentaneamente), para acrescentar que o viés de crença cresce enormemente com as redes sociais. Por quê?
Numa pesquisa de 2009, Jonathan Evans e outros mostraram que, na nossa preferência pelas crenças mesmo contra argumentos válidos, um dos fatores cruciais é o tempo. Quando falta o tempo de pesar e meditar os argumentos, os indivíduos preferem recorrer a suas crenças, que estão sempre disponíveis imediatamente.
Uma diferença de minutos, se não de segundos, pode ter consequências significativas. E estou pensando numa diferença de tempo específica: a diferença entre o tempo de postar um comentário imediato e o tempo de procurar caneta e papel, para escrever uma carta.
O tempo da carta talvez dê uma chance aos argumentos. No comentário postado, em regra, só se mobilizam as crenças. Conclusão engraçada e triste, nas redes, fala-se muito, mas ninguém tem a menor chance de convencer ninguém.
Da mesma forma, nas conversas, orais ou por WhatsApp, poderíamos reavaliar a função crucial do silêncio antes de responder.
Agora, começando a abordar as razões de nosso viés de crença, uma delas é a coesão de grupo. Amamos as crenças porque elas nos ligam aos que acreditam na mesma coisa que nós. Ou seja, amamos as crenças porque elas nos permitem pertencer a um partido, uma torcida, uma bancada (da bíblia ou da bala), uma roda de boteco. Render-se a argumentos válidos e abandonar nossas crenças pede quase sempre que paremos de frequentar os grupos que compartilham essas crenças.
Em suma, a regra de ouro para pensar é: tempo e solidão.


Texto de Contardo Calligaris, na Folha de São Paulo

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